quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Eleições presidenciais de 2011 - O Nó Cego

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O PRESIDENTE ELEITO não vai ter surpresas. Já sabe que país tem e o estado em que se encontra. O governo e os partidos também não. Sabem o que têm e o que fizeram. E sobretudo o que adiaram. Surpresas, a breve prazo, talvez as tenham os cidadãos. O nó cego na vida política portuguesa e o impasse na actividade económica e na situação financeira exigem acção. Depois de cinco anos de adiamento e de agravamento, após quase dois anos de suspensão e azedume, já não é mais possível fazer de conta, protestar de modo impotente ou olhar para o lado. O que se segue a esta eleição de calendário não é previsível. Grande remodelação? Coligação tardia? Demissão do governo? Dissolução do Parlamento? Iniciativa presidencial? Novas eleições? Novos pacotes de austeridade? Chegada do FMI e do Fundo Europeu? Nova intervenção política da Alemanha e da União Europeia? Tudo pode acontecer. Os dirigentes políticos nacionais já quase não são mestres da sua decisão. As grandes instituições nacionais parecem cercadas e incapazes. Tal como estiveram desde as últimas eleições legislativas, há quase ano e meio, à espera de umas presidenciais ineficazes.

A FALTA de previsibilidade é má conselheira. Pior: revela a miopia dos responsáveis políticos, reféns de interesses particulares e de instâncias internacionais. Tudo o que podia ter sido feito há anos (coligação de governo, aliança parlamentar, plano nacional, programa de emergência, recurso financeiro internacional, etc.) foi adiado de modo incompreensível, por causa da incompetência, da ignorância, da covardia e da cupidez dos agentes políticos. Tudo terá de ser feito em piores condições e em mais terríveis circunstâncias. Há três ou quatro décadas que a história do nosso país é uma frustre sucessão de adiamentos. O fim da guerra, a democracia, a liquidação das “conquistas” de 1975, a abertura da economia, a revisão da Constituição, a reforma da Administração Pública e da Justiça: eis, por defeito, uma breve lista do que fizemos tarde e mal, quando podíamos ter feito cedo e bem.

NO RESCALDO das eleições presidenciais de 1996, detectavam-se facilmente os problemas políticos mais importantes para os quais uma resolução era necessária e um esforço urgente: a justiça e a corrupção. Nestes cinco anos, essas dificuldades agravaram-se. Justiça deficiente e corrupção alimentam-se reciprocamente e combinam à perfeição com um sistema de partidos e de governo que as tornou indispensáveis à sua manutenção. A Administração Pública submeteu-se ainda mais à voracidade partidária. Alguns interesses económicos, os que mais dependem do Estado e os que menos escrúpulos têm, souberam capturar as instituições públicas e a decisão governamental. Certos interesses profissionais e corporativos conseguiram também, por outras vias, fazer o Estado refém e organizar, a seu proveito, os grandes serviços públicos e sociais. Assim, o Estado perdeu a sua liberdade, a sua isenção e a sua capacidade técnica e científica. É o administrador dos interesses de algumas corporações e de alguns grupos económicos. Por esse serviço, o Estado cobra, para os partidos, uma gabela ou um tributo. A corrupção, em Portugal, não é apenas o pagamento ilegal feito para obter vantagens públicas. É um sistema, frequentemente legal, de cruzamento de interesses e favores, de benefícios e vantagens, ao qual ninguém, nos superiores órgãos de poder político, parece querer realmente colocar um travão. Fora dos órgãos de poder político, só a Justiça poderia ser, em teoria, um freio e um antídoto a este sistema. Acontece que a Justiça se transformou também em parte integrante deste sistema. A sua ineficácia ainda é o menor dos males. Bem pior, na verdade, são os protagonistas e os principais activistas do sistema judiciário (Conselhos Superiores e sindicatos) que pretendem agora, explicitamente, uma maior fatia dos proventos económicos e do poder político.

O GOVERNO, refém interna e externamente, administra a democracia como quem preside ao saque do Estado: na economia, satisfaz, para além das exigências do país, os interesses económicos; na sociedade, distribui, mesmo sem os recursos necessários, a protecção social. Enquanto houve crescimento económico, rendimentos e crédito externo, o governo e os seus partidos alimentaram a democracia com aquela distribuição, compatibilizando assim as mais absurdas, socialistas e sectárias políticas sociais de saúde, educação e segurança social, com as mais predadoras e vorazes iniciativas capitalistas. Este mundo improvável acabou. Os recursos financeiros esgotaram. O crescimento económico estagnou. O crédito evaporou-se. Pela primeira vez, em trinta anos, a democracia portuguesa está em perigo, porque perdeu os seus instrumentos favoritos. A nossa democracia ligou-se perigosamente aos favores concedidos e à demagogia providencial. Sem esquecer o facto de a confiança nas instituições políticas, públicas e judiciárias, essencial à liberdade, estiola.

O CLIMA é mais importante do que o raio de sol ou o aguaceiro de passagem. Criar riqueza e favorecer o investimento é essencial, mas tal não se fará sem um novo enquadramento geral. Decretos e truques de cartola nada resolvem, sem a confiança dos cidadãos e dos agentes económicos. Sem certeza e estabilidade, as intenções e as oportunidades são miragens. Sem lealdade legislativa, ninguém, cidadãos ou empresas, pode planear as suas actividades. Uma boa estatística, que inebria os medíocres, será sempre contrariada pela seguinte, bem mais cruel.

PORTUGAL parece não estar dotado das instituições políticas, dos órgãos de poder, de partidos políticos e de dirigentes à altura de resolver alguns dos problemas essenciais do presente. O processo político português está de tal modo feito que tudo contraria os esforços políticos para reordenar a vida pública e encarar de modo duradouro as necessidades de emergência. As soluções encontram-se na relação entre sociedade e responsáveis políticos, não mais em golpes de sorte partidários, em personalidades impolutas ou em arranjos de gabinete. Com perícia e responsabilidade, as soluções serão graduais e pacíficas, mas rápidas. Sem o que, bruscamente, nada de bom resultará. Impõe-se uma paz partidária, nem que seja apenas entre alguns partidos. E é necessária uma trégua social honesta e equilibrada. Sem abdicar da sua autonomia, patrões e sindicatos precisam de encontrar um ponto de entendimento sem intervenção dos partidos.

AS PERIPÉCIAS, os acidentes de percurso, o carácter de algumas individualidades, a futilidade de tantos comportamentos políticos e a inutilidade das declarações públicas continuarão a ilustrar o roteiro da nossa jornada futura. Mas é possível detectar, indelével, sob a espuma do efémero, o percurso principal. Dentro de cinco ou dez anos, Portugal poderá ser governado de modo diferente. Com mais ou menos democracia. Em completa dependência do estrangeiro ou com uma relativa autonomia. Com graus de corrupção pelo menos controlados ou na submissão a uma partidocracia insaciável. Com novos partidos, novo sistema de governo e um regime diferente. O governo de maioria poderá ser a regra, mas a deriva minoritária poderá prosseguir. O regime parlamentar ou presidencial poderá substituir este arremedo que nos rege, fruto da invenção delirante de juristas medrosos e académicos sem visão da realidade. As eleições poderão ser nominais, mas a ditadura dos partidos poderá também manter-se no alheamento do soberano e dos direitos individuais. Os dilemas são estes. Inelutáveis. Mas as escolhas são nossas. Pelo menos em parte.
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«Público» de 24 Jan 11

5 comentários:

Rui Mendes disse...

Caro António

Antes de mais, deixe-me parabenizá-lo pela sensatez das suas palavras, pela reunião de predicados pessoais e intelectuais que elevaram a palavra democracia no contexto societal português. Admiro também a forma com ajudou a elevar a Sociologia a uma ciência com natural relevância social, aspecto que me satisfaz face à minha formação de base, que tenho a sorte de poder afirmá-la um pouco em contexto de trabalho. Venho contactá-lo deste modo, porque não encontrei outra forma. Faço parte de uma estrutura local do Partido Socialista (Alcabideche, Cascais) e gostariamos de organizar um jantar apolítico sobre as temáticas: "os políticos e a sociedade, a relação entre a democracia e as elites", com algumas pessoas ligadas à sociedade civil cascaense e às instituições aqui sediadas e seria uma enorme honra contar com a sua presença como orador principal. Admiramos profundamente as suas reflexões analíticas e consideramos que seria a pessoa ideal para demonstrar à sociedade que os políticos, desde que convictos e desprendidos de algumas malhas do poder, poderão inverter a opinião generalizada da população face à sua actuação. O meu email é ruifamendes@gmail.com. Saudações sociológicas. Espero que consiga retribuir-nos um pouco do seu saber.

Bartolomeu disse...

Inteligente e lúcida análise da situação politica e social no nosso país.
Mais do que em Abril de 74 estão reunidas as exigências suficientes para que ocorra no nosso país, um golpe de estado que devolva à sociedade o verdadeiro sentido de democracia, de república e de estado de direito.

Ribas disse...

O governo não está refém das instituições supranacionais. Pelo menos não o está em todas as matérias. Tem a responsabilidade, o dever e a legitimidade para arrumar a casa e fazer reformas. Tem obrigação e legitimidade para acabar de uma vez por todas com as regalias injustificadas deles próprios; desde acabar com secretários, secretárias, sub-secretários e com todos os encargos inerentes - gabinetes, carros, motoristas, ordenados; controlar despesas com gestores públicos e com empresas públicas (todas têm frotas de carros de luxo e qualquer um tem direito a um carro e com condutor); acabar com os polícias à porta dos Ministros (não servem para mais nada senão marcar o estatuto de Sr. Ministro); acabar com acumulação de reformas e reformas antecipadas; alienar empresas como a RTP (sorvedouros de dinheiro público e já proveniente de empréstimos caríssimos do exterior), no fundo acabar com a cagança desmesurada que está instalada, sem a qual poderiam bem viver. O ordenado que auferem chega bem para uma vida digna e desafogada e para se dedicarem de corpo e alma à causa pública e não apenas, com os seus interesses particulares.
Se o governo fizesse isto, já estaria a fazer muito. E isto não depende (por enquanto) do aval de nenhuma instituição supranacional para ser feito.

Francisco Castelo Branco disse...

Excelente ponto de vista.

Os sucessivos adiamentos e arranjos de gabinetes são os grandes males da nossa democracia.

Parece que em PORTUGAL mudar assusta muitas pessoas. Porque inveitavelmente isso mexe com interesses e ha que não perder o tacho.

Ha dez anos que falamos destes problemas, e provavelmente nos próximos dez a conversa vai ser a mesma.

Encontramo-nos num impasse porque os sinais de mudança não surjem.

Dai que a abstenção nas ultimas eleições nao tenha sido surpresa.
Mas o pior mesmo foram os votos em brancos. Esses sim, representam voto de protesto

patricio branco disse...

Excelente artigo de análise sobre o que nos espera e como estamos.
E, se me é permitido dizer ou acrescentar, nós, os cidadãos portugueses, tambem sabemos agora melhor e mais sobre o presidente eleito que tinhamos e teremos.