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Se o desonesto conhecesse as vantagens de ser honesto,
seria honesto ao menos por desonestidade.
Sócrates (filósofo grego)
seria honesto ao menos por desonestidade.
Sócrates (filósofo grego)
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OS PORTUGUESES usufruem, felizmente, de um imenso rol de direitos. A leitura da Constituição é suficiente para termos essa certeza. Outros diplomas, das Cartas europeia e universal à lei avulsa, garantem esses mesmos direitos, alargando-os, desenvolvendo-os e dando-lhes tradução prática. Nem todos esses direitos são realmente garantidos e direitos há, os direitos sociais especialmente, cuja eficácia real é duvidosa (direito ao emprego, direito ao alojamento digno, direito à cultura, etc.), mas que encontram, no Estado, obrigações derivadas (subsídios de desemprego e social de inserção, etc.). Entre outras lacunas, um direito faz falta aos cidadãos: o direito à honestidade dos seus dirigentes políticos, económicos e empresariais.
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A HONESTIDADE é um valor em decadência há muito tempo. Não que tenha sofrido, como muitos pensam, da avalanche moderna que se traduz na frase feita: “Hoje, já não há valores”! Aconteceu simplesmente que outros valores mais altos se levantaram. Há muitas pessoas que, com saudades de um qualquer tempo que recordam com doçura, acreditam com ansiedade nessa falsa verdade. Pensam que a “crise de valores” reside no desaparecimento dos ditos. Ora, tal não é verdade. Nos dicionários, por exemplo, os significados de “valor” que consistem em qualidades intrínsecas, em atributos como o bom, o belo, o verdadeiro e o digno e em crenças morais respeitadas, vêm muito depois de outros significados mais terrestres, como sejam os preços, as quantidades, os valores nominais e reais, etc. Na classificação dos valores, a moral, o belo, a verdade e a dignidade não estão à cabeça.
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À HONESTIDADE aconteceu algo de parecido. A ponto de se considerar que uma pessoa honesta “é parva” e “não sabe da poda”. Abundam os lugares-comuns que revelam que a honestidade não é um valor com muita saída. Quem defende a honestidade é considerado “ingénuo”. De alguém que perde tempo a escrever sobre a necessidade da honestidade na vida pública se dirá simplesmente que perde tempo com “sermões”. De um honesto se garante que nunca será rico nem irá muito longe na política. Um comerciante que não ”mete a unha” é palerma. Um corretor de bolsa que não usa informação privilegiada e não manipula os concorrentes é um mau profissional. Um político que, antes das eleições, não esconde as dificuldades, para só as revelar depois de ganhar, é um “tonto” e deveria mudar de profissão. Um empresário que nada oculta aos trabalhadores é um “samaritano” sem “killer instinct”. Um estudante que copia ou plagia só merece condenação se for descoberto. Aliás, se for “apanhado”, a complacência é de rigor.
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TEMPOS HOUVE em que se tolerava ou compreendia a desonestidade por necessidade. Um ladrão que roubava pão merecia compaixão. Hoje, tolera-se a desonestidade de quem quer ganhar. Mais: recomenda-se a desonestidade para vencer na vida, na profissão, na política ou nos negócios. O financeiro que compra acções e empresas, que obtém empréstimos colossais, que joga e especula, pode utilizar os métodos que quiser, desde que vença. Os grupos económicos que usam métodos estranhos para ganhar concursos e empregam ou compram políticos são exemplos de boa gestão. A um político, pergunta-se se ganhou as eleições, se vai alto nas sondagens e se liquidou os seus adversários, mas ninguém se interessa pelos métodos utilizados. O empresário que mente aos trabalhadores, esconde informações e foge com bens e mercadorias tem perdão, pelo menos não é punido. O universitário que mente nos concursos apenas comete uma pequena falha ou nem sequer. O futebolista que engana o árbitro, magoa o adversário ou mete a mão à bola é um herói, desde que ganhe. O autarca que “faz obra” e enriquece ao mesmo tempo é um “fazedor”. O político que mente em benefício próprio limita-se a usar as ferramentas do ofício.
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O QUE É realmente importante na vida é vencer, enriquecer, mandar, ganhar votos e triunfar. Vender e comprar mais. Fazer subir a curva dos lucros. Aumentar as adesões. Subir as audiências. Melhorar as sondagens. Passar nos exames. Alcançar um estatuto de importância e reconhecimento. Apostar no futuro e na tecnologia. Acreditar em si e nos seus. Ter êxito. Estes são os valores que presidem à nossa vida. De tal modo que os meios para atingir os objectivos são de menor ou nenhuma importância.
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OS RECENTES episódios que colocaram em crise a política e as finanças mostraram bem esta nova concepção dos valores sociais. Toda a gente pensa hoje que algo não está certo no que a Caixa Geral de Depósitos tem feito. Perdas de rendimentos. Empréstimos para especulação e manipulação do mercado e de outras empresas, nomeadamente de bancos. Criação de grupos de controlo de outros bancos. Encobrimento de negócios de amigos. Ajuda especial a amigos e favoritos. E operações discutíveis seguidas de transferência de administradores. Estas são apenas algumas acusações que se fazem, aqui e ali. No BPN, os casos são ainda mais flagrantes. No BPP, mais misteriosos. Nos cimentos e nos petróleos, mais estranhos. Nas obras públicas, mais esquisitos. Por cima de todos eles, voa a acusação de interferência dos partidos PS e PSD, assim como dos últimos quatro ou cinco governos.
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NENHUMA das acusações ou suspeitas acima referidas está provada. Mas os mais visados defendem-se mal. Governantes e magistrados têm o dever de ajudar a população a compreender, mas fazem-no mal ou não o fazem. Comentadores e especialistas desdobram-se em desculpas e justificações, invocando a lei e o mercado. Mas a verdade é que nem aquela nem este se deveriam sobrepor à honestidade. Mas, infelizmente, a honestidade e a lei não casam bem no nosso país. Aposto que muito do que referi, em particular relativamente à Caixa, é legal. Mas não tenho a certeza de que seja honesto. Aliás, com os exemplos recentes da distinção entre corrupção para fins lícitos e para fins ilícitos, percebe-se bem que a honestidade não está protegida pela lei. Tanto não exijo. Como não quero ser ingénuo nem parvo, não espero que a lei promova a honestidade ou a virtude. Mas creio ser razoável que a lei proíba, condene e castigue a desonestidade, o favor e a corrupção. É o que não temos.
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«Retrato da Semana» - «Público» de 8 de Março de 2009
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A HONESTIDADE é um valor em decadência há muito tempo. Não que tenha sofrido, como muitos pensam, da avalanche moderna que se traduz na frase feita: “Hoje, já não há valores”! Aconteceu simplesmente que outros valores mais altos se levantaram. Há muitas pessoas que, com saudades de um qualquer tempo que recordam com doçura, acreditam com ansiedade nessa falsa verdade. Pensam que a “crise de valores” reside no desaparecimento dos ditos. Ora, tal não é verdade. Nos dicionários, por exemplo, os significados de “valor” que consistem em qualidades intrínsecas, em atributos como o bom, o belo, o verdadeiro e o digno e em crenças morais respeitadas, vêm muito depois de outros significados mais terrestres, como sejam os preços, as quantidades, os valores nominais e reais, etc. Na classificação dos valores, a moral, o belo, a verdade e a dignidade não estão à cabeça.
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À HONESTIDADE aconteceu algo de parecido. A ponto de se considerar que uma pessoa honesta “é parva” e “não sabe da poda”. Abundam os lugares-comuns que revelam que a honestidade não é um valor com muita saída. Quem defende a honestidade é considerado “ingénuo”. De alguém que perde tempo a escrever sobre a necessidade da honestidade na vida pública se dirá simplesmente que perde tempo com “sermões”. De um honesto se garante que nunca será rico nem irá muito longe na política. Um comerciante que não ”mete a unha” é palerma. Um corretor de bolsa que não usa informação privilegiada e não manipula os concorrentes é um mau profissional. Um político que, antes das eleições, não esconde as dificuldades, para só as revelar depois de ganhar, é um “tonto” e deveria mudar de profissão. Um empresário que nada oculta aos trabalhadores é um “samaritano” sem “killer instinct”. Um estudante que copia ou plagia só merece condenação se for descoberto. Aliás, se for “apanhado”, a complacência é de rigor.
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TEMPOS HOUVE em que se tolerava ou compreendia a desonestidade por necessidade. Um ladrão que roubava pão merecia compaixão. Hoje, tolera-se a desonestidade de quem quer ganhar. Mais: recomenda-se a desonestidade para vencer na vida, na profissão, na política ou nos negócios. O financeiro que compra acções e empresas, que obtém empréstimos colossais, que joga e especula, pode utilizar os métodos que quiser, desde que vença. Os grupos económicos que usam métodos estranhos para ganhar concursos e empregam ou compram políticos são exemplos de boa gestão. A um político, pergunta-se se ganhou as eleições, se vai alto nas sondagens e se liquidou os seus adversários, mas ninguém se interessa pelos métodos utilizados. O empresário que mente aos trabalhadores, esconde informações e foge com bens e mercadorias tem perdão, pelo menos não é punido. O universitário que mente nos concursos apenas comete uma pequena falha ou nem sequer. O futebolista que engana o árbitro, magoa o adversário ou mete a mão à bola é um herói, desde que ganhe. O autarca que “faz obra” e enriquece ao mesmo tempo é um “fazedor”. O político que mente em benefício próprio limita-se a usar as ferramentas do ofício.
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O QUE É realmente importante na vida é vencer, enriquecer, mandar, ganhar votos e triunfar. Vender e comprar mais. Fazer subir a curva dos lucros. Aumentar as adesões. Subir as audiências. Melhorar as sondagens. Passar nos exames. Alcançar um estatuto de importância e reconhecimento. Apostar no futuro e na tecnologia. Acreditar em si e nos seus. Ter êxito. Estes são os valores que presidem à nossa vida. De tal modo que os meios para atingir os objectivos são de menor ou nenhuma importância.
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OS RECENTES episódios que colocaram em crise a política e as finanças mostraram bem esta nova concepção dos valores sociais. Toda a gente pensa hoje que algo não está certo no que a Caixa Geral de Depósitos tem feito. Perdas de rendimentos. Empréstimos para especulação e manipulação do mercado e de outras empresas, nomeadamente de bancos. Criação de grupos de controlo de outros bancos. Encobrimento de negócios de amigos. Ajuda especial a amigos e favoritos. E operações discutíveis seguidas de transferência de administradores. Estas são apenas algumas acusações que se fazem, aqui e ali. No BPN, os casos são ainda mais flagrantes. No BPP, mais misteriosos. Nos cimentos e nos petróleos, mais estranhos. Nas obras públicas, mais esquisitos. Por cima de todos eles, voa a acusação de interferência dos partidos PS e PSD, assim como dos últimos quatro ou cinco governos.
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NENHUMA das acusações ou suspeitas acima referidas está provada. Mas os mais visados defendem-se mal. Governantes e magistrados têm o dever de ajudar a população a compreender, mas fazem-no mal ou não o fazem. Comentadores e especialistas desdobram-se em desculpas e justificações, invocando a lei e o mercado. Mas a verdade é que nem aquela nem este se deveriam sobrepor à honestidade. Mas, infelizmente, a honestidade e a lei não casam bem no nosso país. Aposto que muito do que referi, em particular relativamente à Caixa, é legal. Mas não tenho a certeza de que seja honesto. Aliás, com os exemplos recentes da distinção entre corrupção para fins lícitos e para fins ilícitos, percebe-se bem que a honestidade não está protegida pela lei. Tanto não exijo. Como não quero ser ingénuo nem parvo, não espero que a lei promova a honestidade ou a virtude. Mas creio ser razoável que a lei proíba, condene e castigue a desonestidade, o favor e a corrupção. É o que não temos.
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«Retrato da Semana» - «Público» de 8 de Março de 2009
14 comentários:
A honestidade está em decadência
com os actuais valores sociais,
frenética é a cadência
das políticas demenciais.
Nas altas esferas do Estado
multiplicam-se os poleiros,
o mexilhão enlatado
enoja-se com os políticos foleiros!
Excelente texto, mas que podemos fazer realmente?
O Sr. António Barreto talvez consiga confirmar uma lei que me falaram á tempo e que me deixou deveras curioso. É verdade que se 50% dos votos forem em branco numa eleição legislativa por exemplo, automaticamente todos os políticos inscritos nas listas de todos os partidos ficam automaticamente banidos de participar em eleições durante 5 anos? Será que é verdade? Se é porque não é divulgado? Se não é verdade porque não passar a ser? Existe algum tipo de consequência para uma maioria branca, como o Sr. José Saramago um dia imaginou? É que não vejo na actual democracia, como jovem nascido pós 25 de Abril nenhum outro meio de contestação para alem das greves ou desobediência civil...
Fica a questão e parabéns pelo blog :)
Recomenda-se a desonestidade
para na vida vencer,
a exacerbada materialidade
faz essa torpeza prevalecer.
Os meios para atingir os objectivos
são (quase) totalmente irrelevantes,
os aspectos valorativos
ganham razões aberrantes!
O mexilhão ordeiro
a viver do trabalho honesto,
assiste como um cordeiro
a este quadro funesto!
Não só é um direito como um dever...
Presume-se que correcção e transparência de procedimentos deveriam ser uma exigência de qualidade dos serviços prestados pelas instituições públicas e privadas. Em qualquer caso, haverá, ou não, entidades reguladoras e mecanismos de fiscalização e reclamação eficazes, por parte do Estado e do cidadão?
Caro AMB,
Excelente texto, na linha do que sempre nos habituou. Mas permita-me separar duas questões:
1) a honestidade ao nível empresarial, financeiro, políto-empresarial, etc. suponho que tem as suas infracções tipificadas no código penal. Por isso se não é punida é um problema de justiça ou de alguém que a entrave. A questão o que poderemos fazer, levantada pelo Pedro Mateus faz-me pensar que só uma insurgência cívica poderia mudar o status quo. Ou continuaremos, com o perdão da expressão a "comer do mesmo". O que lhe parece?
2) Um nível mais fino de desonestidade passa pela complacencia com que aceitamos que políticos eleitos se desviem de promessas (e aqui sabemos bem que a cor partidária é indiferente). Quando olho para o caso americano, que me interessa particularmente e para tomar o exemplo dos últimos dias constato um compromisso diplomático de tentativa de diálogo com o Irão cumprido, e uma ousada proposta de diálogo com os talibã - que se traduz na satisfação da promessa de tentativa por todos os meios de resolução da questãoi afegã (o link para quem desconheça essas iniciativas: http://ovalordasideias.blogspot.com/2009/03/semana-do-blitz-diplomatico-de-hillary.html). A pergunta que me sobra é se aquela forma quase naif de os americanos olharem a política como um compromisso a cumprir quando assumido eleitoralmente, não se torna uma questão cultural? Estamos nós educados para pedir responsabilidades de facto ao poder político por incumprimento de promessas?
Desculpe a extensão da mensagem.
Carlos Santos
Olá. De uma forma simples, com frases e palavras que entendi, limpei «a minha alma» porque também não gosto que me considerem ingénua quando saliento que não vale tudo para se obter o que se pretende.
Obrigada pela lição senhor professor.
Os valores valem em si mesmo, ou são valores depois de lhe atribuirmos valor?
Há-os já consagrados pela experiência humana e que não constituem qualquer problema, como é o exemplo da vida humana. Mas mesmo assim, há lugares no mundo que até nem por isso.
E há-os que, embora maioritariamente aceites, são disfrutáveis ou transgredidos ao sabor da subjectividade e contingência de cada um, como se num caos ético se vivesse.
Portanto, erigir uma sociedade humana com valores obriga a constituição de um monumento poderoso para normalização e controlo desses valores. Ora quando esse monumento tem pés de barro porque não é constituído por gente séria, escolhida entre os melhores,(e quem são os melhores?) a coisa torna-se caótica, como se vai vendo por todo o mundo.A fraqueza da carne sempre tem vencido.
As Constituições e os códigos penais não se realizam na letra...
É preciso algo mais.
Talvez algo Hamurábico...com uma capa soft para não chocar o irritante, irritável e dominante Politicamente Correcto, para começar: uma coisa tipo 'Uma nova ecologia Mundial, para limpar o mundo de gente reles'.
Só que, sabemos todos há muito tempo, o verdadeiro problema é outro:
É que o Homem é um milagre que não valeu a pena!
A coisa já não vai com novas Éticas nem com mais deuses...
E que me seja perdoado o pessimismo...
Emoldure-se para memória futura!
A HONESTIDADE recompensa por dentro, não serve para adornar a casca.
Educar para a honestidade também é um caminho, aos meus filhos pedi e peço sempre que assumam com verdade, os chocolates comidos, as notas dos testes, as reprimendas, as brigas, de pequenos sabem que a punição será atenuada pela verdade e frontalidade, e assim por maior que seja a asneira mais vale contar.
Mas o Mundo é para espertos e não para inteligentes ou bons ou honestos.
Também quem quer este Mundo? Só mesmo os espertos desonestos...
é o país que temos
Senhor Antonio Barreto, parabéns por todas palavras do seu texto, e principalmente pela palavra Honestidade. Pra mim, hoje, ser honesto é pertencer a um grupo de elite(infelizmente, é claro!). Guardião dos valores éticos, tenta conservá-los e vai dando conhecimento deles às gerações que vão chegando...
E como é difícil convencer um jovem , actualmente, que ser honesto vale a pena!!!!!Eu sou mãe, e travo uma luta diária pra transmitir aos meus filhos, a mais valia da Honestidade. Lá vou conseguindo a duras penas , dando o próprio exemplo. Com uma certeza: ser honesto é a única via possível!
Caro António Barreto não podia estar mais de acordo, até porque há muito tenho a prova
"científica" do pouco valor da honestidade para a sociedade portuguesa.
Nas eleições disputadas entre Durão Barroso e Guterres, pouco antes das elições a mesma sondagem, mostrada na televisão, da Universidade Católica, dava preferência de voto a Durão Barroso para o governo e à pergunta de qual candidato achava mais honesto a tendência era exactamente a invertida em relação ao voto para a chefia do governo...
Não me interessa quem é o mais honesto, não está em discussão, o que achei inacreditável foi os mesmos eleitores escolherem para primeiro ministro o candidato que achavam menos honesto...
Temo que a maior parte dos profunda e irrefragavelmente honestos estejam irrefragavel e profundamente desempregados, como eu.
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