HÁ QUALQUER COISA no ar! Existe um mal-estar evidente. Não há dia que um novo facto, revelando comportamentos ilícitos de toda a espécie, não se acrescente a uma longa lista de casos aparentemente impunes ou não resolvidos. As leis parecem impotentes. Pensa-se que a justiça está paralisada. Julga-se que os investigadores nada descobrem. Nunca se consegue provar qualquer coisa. Os processos duram anos, até serem arquivados ou prescreverem. Quando há certezas, faltam as provas. Quando há provas, há circunstâncias atenuantes. Parece que os níveis morais da vida pública baixaram ou se dissolvem diante dos nossos olhos. Será exagero da opinião pública? Rumores urbanos em tempos de dificuldades? Sequelas de um ano eleitoral particularmente intenso? Consequências da crise financeira que revelou habilidades consideradas normais em ciclo de êxito dos negócios? Voracidade dos jornalistas em renhida competição? Campanhas de partidos, de agências de comunicação e de associações de interesses? Ou, simplesmente, a verdade? Que se passa realmente? De tudo um pouco.
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PORTUGAL e os portugueses têm um problema com a corrupção. Ou antes: têm muitos problemas. A começar pela definição. Engloba-se no conceito muito que o não é, apesar de ilegal ou imoral. As cunhas, os favores e a preferência familiar ou partidária podem não ser verdadeira corrupção, mas pertencem às mesmas categorias de comportamentos ilícitos. Nem todas as irregularidades administrativas, adjudicações directas, nomeações e promoções integram necessariamente uma definição precisa de corrupção, mas não deixam de constituir comportamentos igualmente condenáveis. Licenças concedidas em condições especiais, alvarás obtidos mais rapidamente, derrogações efectuadas em planos legais e autorizações conseguidas em circunstâncias extraordinárias podem não ser sempre obtidos contra pagamento, mas são vizinhos da corrupção. Decisões discricionárias, subsídios individualizados e contratos selectivos podem ter várias causas, não automaticamente “luvas”, mas são parentes próximos da corrupção. Perdões fiscais ou de multas e olhos fechados perante certos gestos não são sempre actos corruptos, mas andam por lá perto. Finalmente, o tráfico de influências e a promiscuidade, que caracterizam a passagem da política ao negócio, do público ao privado, do partido à administração e vice-versa, não são tidos tecnicamente por corrupção, mas são, nesta família de comportamentos, os membros mais predadores e devastadores de uma vida pública decente.
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ESTES GESTOS, de difícil definição rigorosa, implicam vários conceitos essenciais. Acto ilícito; obtenção, contra pagamento, de favores e vantagens em detrimento de outrem; não cumprimento das regras legais e constitucionais (incluindo a da igualdade de oportunidades); e intervenção, em interesse próprio, junto de alguém com poder ou capacidade de interferir num processo de decisão. O problema é que muitos gestos não respondem necessariamente a todos estes critérios. Pode não haver pagamento, mas favor ou nomeação; pode não ser em interesse próprio, mas no de partido ou empresa; pode não ser explicitamente ilegal; pode não ser em detrimento de outrem; pode não estar previsto na lei. Mais ainda, pode ser atenuado e normalizado pela lei. Neste último caso, encontram-se, por exemplo, as situações de promiscuidade e tráfico de influências, para os quais as normas legais são particularmente brandas. Pertencer simultânea ou sucessivamente a uma empresa, uma associação de interesses, um grupo parlamentar e um governo, tratando dos mesmos assuntos, é possível em muitas circunstâncias. Já se viu entre nós muitas vezes. Negociar com uma empresa, primeiro em nome de um governo, depois, com o governo, em nome da mesma empresa, é possível, desde que se cumpram uns vagos e suaves períodos de branqueamento. Ganhar poder no governo e enriquecer rapidamente, logo a seguir, nas empresas, é possível e frequente, é mesmo considerado um exemplo de iniciativa. Ganhar e distribuir dinheiros de modo irregular, desde que se faça obra, de preferência social e a favor das populações, pode ser considerado um gesto de gestão virtuosa e popular. O favor partidário, sob a designação de confiança política, está devidamente consagrado na lei. Tem-se a impressão de que, em Portugal, há a boa e a má corrupção. A boa e a má promiscuidade. As boas são louvadas. As más são esquecidas.
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SE A CORRUPÇÃO for de esquerda, só a direita reage. E vice-versa. Se for autárquica, só o poder central se insurge. E reciprocamente. Se for pública, só os privados protestam. E ao contrário. Se for de um partido, aos outros de contrariar. E assim por diante. Quer isto dizer que não existe qualquer espécie de tradição ou de “cultura” contra a corrupção, a promiscuidade e a “cunha”. Na verdade, os beneficiários são muitos: municípios, populações locais, associações desportivas, partidos políticos, empresários, proprietários, construtores, promotores imobiliários, funcionários públicos, políticos, banqueiros e comerciantes. Neste nosso pobre país, a corrupção é democrática. Herdámos a corrupção da ditadura, à qual acrescentámos a liberal. Recebemos a corporativa, enriquecendo-a com a socialista e a capitalista. Sem regulação à altura, o mercado gera corrupção, fraude e promiscuidade. Quando aparece o Estado, corrupção, fraude e promiscuidade são geradas. Do atraso económico e cultural, recebemos a cunha e o favoritismo; mas do crescimento fácil chegou-nos o casino. Da ditadura, tínhamos a corrupção escondida; da democracia, temos a corrupção exposta.
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QUE FAZER? Creio que ninguém é capaz de responder. Só uma coisa se sabe: tudo começa na justiça. Mas, saber isso, com a justiça que temos, é o mesmo que nada.
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«Retrato da Semana» -«Público» de 29 de Março de 2009
SE A CORRUPÇÃO for de esquerda, só a direita reage. E vice-versa. Se for autárquica, só o poder central se insurge. E reciprocamente. Se for pública, só os privados protestam. E ao contrário. Se for de um partido, aos outros de contrariar. E assim por diante. Quer isto dizer que não existe qualquer espécie de tradição ou de “cultura” contra a corrupção, a promiscuidade e a “cunha”. Na verdade, os beneficiários são muitos: municípios, populações locais, associações desportivas, partidos políticos, empresários, proprietários, construtores, promotores imobiliários, funcionários públicos, políticos, banqueiros e comerciantes. Neste nosso pobre país, a corrupção é democrática. Herdámos a corrupção da ditadura, à qual acrescentámos a liberal. Recebemos a corporativa, enriquecendo-a com a socialista e a capitalista. Sem regulação à altura, o mercado gera corrupção, fraude e promiscuidade. Quando aparece o Estado, corrupção, fraude e promiscuidade são geradas. Do atraso económico e cultural, recebemos a cunha e o favoritismo; mas do crescimento fácil chegou-nos o casino. Da ditadura, tínhamos a corrupção escondida; da democracia, temos a corrupção exposta.
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QUE FAZER? Creio que ninguém é capaz de responder. Só uma coisa se sabe: tudo começa na justiça. Mas, saber isso, com a justiça que temos, é o mesmo que nada.
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«Retrato da Semana» -«Público» de 29 de Março de 2009
13 comentários:
Caro António Barreto
Concordo que por tradição a culpa nestes assuntos é especialmente orfã.
Hoje no entanto, em Portugal, é menos orfã...quem frustrou tentativas válidas conducentes a uma maior transparência, como foi a de João Cravinho, é de certo mais culpado do "status quo" do que os demais.
Abraço
Apesar de tudo acho que o Estado Novo perde por pontos com esta Terceira República em matéria de corrupção.
Que justiça AB! Pertenci durante bastante tempo a uma polícia de investigação criminal. Um dos defeitos que lhe eram apontados, baseava-se na velha questão em que a mesma era controlada pela hierarquia, logo, só era possível investigar e levar a tribunal as categorias inferiores. Os próprios tribunais, específicos dessa instituição, eram acusados de só condenar os rasos e absolver os intermédios que por azar tinham ido a julgamento. Em parte era verdade. Essa mesma polícia, desde 2004, passou a depender do Ministério Público nas mesmíssimas condições que os outros OPC’s. Até aqui sem críticas. O problema surge quando se vê este governo a querer esquecer todos estes exemplos e a querer hierarquizar os juízes, pelos vistos com o apoio do povo, controlar o Ministério Público, governamentalizar as polícias e aumentar o segredo de justiça (o mesmo segredo que há uns anos atrás, no tempo da casa pia, essas mesmas pessoas «cagavam» para o segredo).
Quero ver se essas leis de controlo da justiça avançarem, quantos políticos governamentais veremos a serem investigados? Ou alguém duvida que se esse controlo se tornar efectivo, ouviremos falar (talvez injustamente, porque o mesmo é inocente até prova em contrário) do envolvimento no nosso primeiro no caso freeport?
Finis Patriae! Hoje como ontem, Finis Patriae entre almas negras, País em ruínas e decadência, escolas cárceres da infância, cadeias esgotos, lei prostituta, monumentos arrasados de um passado epopeico, monturo d'almas e de excrementos.
«Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia de um coice, pois que já nem com as orelhas é capaz de sacudir as moscas, um povo em catalépsia ambulante, não se lembrando nem de onde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo enfim que eu adoro, porque sofre e é bom ...» Guerra Junqueiro
Seja corrupção escondida,
seja corrupção visível,
temos uma cultura perdida
e de leitura incompreensível.
A forma é diversa
e as suas razões igualmente,
não passa de gente perversa
agindo ilegalmente.
O mexilhão trabalhador
esforçando-se honestamente,
repudia o incumpridor
que enriquece ilicitamente!
UMA QUESTÃO DE CAVALOS
A corrupção, sempre! QUE FAZER? Creio que ninguém é capaz de responder. Só uma coisa se sabe: tudo começa na justiça. Mas, saber isso, com a justiça que temos, é o mesmo que nada.
Caro AB,
Não é a primeira vez que as suas fotografias me incitam a escrever algumas palavras acerca delas. Leio mais esta sequência e tudo nelas está enquadrado de forma irrepreensível, os tons são os adequados, a distância sufiente para se ressaltarem os pormenores relevantes. Contudo, à medida que lhe admirava a precisão e a perspicácia, ia-me pondo a questão recorrente que os seus textos me suscitam. Que fazer? Porque, assim como o doente atormentado com doença ruim, espera que o médico lhe dê uma esperança numa receita e nunca um desumano soco de um "não há nada a fazer", as suas radiografias sem receitas que possam alterar-lhe as fístulas fatais contribuem desumanamente para a nossa depressão e nem sequer para a nossa revolta.
Foi assim, destroçado com a evidência crua e negra das suas palavras, que saltei do antepenúltimo parágrafo para o derradeiro onde a minha ânsia de soluções se agarrou a aquele QUE FAZER? em letras capitais. E a minha desilusão, desculpe-me a franqueza, não podia ser maior, porque o seu remate é um soco no estômago de quem já estava contraído como um condenado mas ainda se agarrava a uma réstea de esperança, aquilo que parece ser a última coisa a morrer.
Se, segundo crê, não há quem saiba responder, que sentido fazem estas suas radiografias? Que propósito pode estar por detrás de um relatório de que se conhecem antecipadamente as conclusões se estas não permitem qualquer saída?
A meio da semana a senhora procuradora Cândida Almeida defendeu a criação do crime de enriquecimento ilícito, que permitiria à justiça dispor de mais uns cavalos para perseguir aqueles que têm cavalos a mais nos seus Maserati. Não valeria a pena discutir esta questão de cavalos?
A diferença entre Portugal e a República Checa é que esta tem o governo em Praga e Portugal tem a praga no governo.
Prezado António Barreto e demais Contertulianos,
Tornou-se descabido, inoperativo, fazer comparações entre a corrupção no tempo da Ditadura e a corrupção em Democracia.
Neste ponto, a Democracia leva já claramente a palma, o que representa uma desgraça, porque destrói uma convicção íntima, antiga, de muita gente.
Concentremo-nos, portanto, nos males de hoje e deixemos os do tempo da Monarquia, da República jacobina, do Estado Novo, etc., para trás, tanto mais que os responsáveis dos males de antanho já nem cá estão para responder por eles.
Quanto aos responsáveis dos novos casos de corrupção, maiores em número e em gravidade, eles aqui se encontram, vivos e folgados, no aparelho de estado ou fora dele, gozando a situação de permanente impunidade que lhe permitem viver.
Dê-se, por isso, força à investigação policial, deixe-se a Judiciária trabalhar e agir em consequência, sem pressões de nenhum género, excepto para o apuramento da verdade.
Quando uma classe política alia à incompetência a desonestidade, o País corre sérios riscos.
A Nação, historicamente, tem sabido reagir a situações de forte abatimento moral e psíquico, como o actual, umas vezes mais acertadamente, outras vezes, menos.
Quero crer que ainda seja capaz de sacudir o estado de prostração em que caiu.
Mas, para isso, a Nação precisa de acreditar em alguém e em alguma coisa, de reconhecer exemplos, paradigmas bons, naqueles que queiram empenhar-se na ingente tarefa de Regeneração, com este ou outro nome, mas que seja qualquer coisa de verdadeiro.
De contrário, continuará a trilhar o caminho da anomia, da auto-destruição, procurando uma desesperada evasão, uma qualquer alienação, em busca de remédio ou paliativo que lhe permita suportar o presente definhamento, cujo fim de linha ninguém adivinha nem quando, nem como chegará, nem que País dele restará.
Pode parecer sombrio, mas o tempo não está para graças.
Bom início de semana para todos e ânimo para vencer o momento...
Peço desculpa caro António Viriato mas parece-me que Vª Exª nos dois primeiros parágrafos do seu comentário é pouco congruente.
A essência do seu segundo parágrafo é semelhante à do segundo comentário desta caixa.
Agradeço e retribuo os seus gentis votos.
Caro Nuno Calisto,
Não tinha reparado bem no seu comentário, mas não faz mal reforçar uma ideia que alguns relutam em aceitar.
Quanto à minha própria incongruência, acho-a neglicenciável,também pela razão acima.
Peço desculpa ao nosso anfitrião, por este diálogo entre comentadores, mas, se há tertúlia, pode admitir-se tal diálogo.
Agradecido.
A verdadeira corrupção instituida é a minha filha de 11 anos pagar uma senha de almoço por €2.26 e outras crianças da mesma escola, da mesma turma e idade, comerem a mesma refeição por €0.40, sendo que eu e a minha esposa descontamos quase €1.000,00 mensais para o estado e não temos qualquer tipo de benefício. E veja-se o pormenor: há dias em que a minha filha consegue comprar por €1.00 uma senha a uma colega que as adquire por €0.40 mas que não vai almoçar ou que prefere com esse euro comprar guloseimas para o almoço. Isto passa-se nas escolas e isto é apenas uma amostra.
Uma pergunta a um homem de esquerda:
- Se eu contribuo da forma como contribuo para este Estado, porque razão a minha filha é penalizada e discriminada dessa forma? É a isso que chamam solidariedade? A isso eu chamo pulhice e filhadaputice de um Estado corrupto, senil e há muito divorciado da Nação.
Como o AB tem dito repetidas vezes é preciso reformar a sério a Justiça.
Vivemos na impunidade e conhecendo o sistema judicial até custa a perceber como é que a Justiça, apesar de tudo, ainda se mexe (não se mexe muito, mas mexe).
Coloquei o texto em
http://cidadaoscontracorrupcao.blogspot.com/2009/04/corrupcao-sempre.html
Já é o segundo (venham mais):
http://cidadaoscontracorrupcao.blogspot.com/search/label/Ant%C3%B3nio%20Barreto
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