Dentro de dias, inicia-se o período anual de pousio político. O debate do Estado da Nação marca o encerramento estival do Parlamento. Em paralelo, as reuniões do Presidente da República com os partidos são outro sinal que se transforma gradualmente em rotina democrática. Logo a seguir, uma reunião do Conselho de Estado marca simbolicamente o fim da temporada democrática.
Vão fazer-se balanços. Uns optimistas e narcisistas, outros pessimistas e aterradores. Todos terão as suas razões. Mas os caminhos vão dar aos mesmos destinos. Um: a vaidade do governo com a economia e as finanças públicas. Dois: a derrota do governo com a saúde. Três: as dificuldades com as políticas sociais e a agitação que se prepara para a rentrée. Quatro: a avaliação das relações do Presidente com o Governo e o Parlamento, uma espécie de diagnóstico ao semipresidencialismo. Cinco: a patética aprovação, exclusivamente pelo partido do governo, do relatório do inquérito à TAP, em que o Governo era o principal visado, mas acaba por ser o principal ausente. Seis: a cada vez mais visível corrupção. Sete: a impressionante crise da justiça, cuja persistência é talvez o mais inquietante sintoma das dificuldades da democracia portuguesa.
Em quase todos os temas que vão ser especialmente debatidos, o denominador comum são as políticas públicas, como sejam as da saúde, da educação e da habitação. É normal que assim seja. Mas há matérias que não são abrangidas por esta noção de política pública. Por exemplo, a corrupção e a justiça. Choca especialmente ver a persistência destes problemas. E é de difícil compreensão a razão pela qual tão pouco se progride, bem pelo contrário, tanto se regride.
Verdade é que há problemas que a democracia não pode e não sabe resolver. Um deles é a corrupção partidária. Outro é a crise da justiça. Há mais, mas estes bastam para ver o problema. Da corrupção, sabe-se que os partidos são os seus principais agentes. Em proveito próprio ou a benefício de amigos, o que vai dar ao mesmo. É difícil esperar que agentes partidários, ministros, directores da administração pública, autarcas e outros dignatários, autores ou beneficiários da corrupção, sejam eles próprios os agentes da sua eliminação.
O que é mais sério e mais interessante é que esses problemas, não resolvidos e não resolúveis pela democracia, só têm solução em democracia. Quem os tente resolver de outra maneira, ditador, partido único, assembleia de “homens bons”, tecnocrata, igreja ou associação secreta, deixará tudo, depois, pior do que antes! O “messianismo” ou a “vassourada” nunca resolveram e sempre criaram problemas mais graves.
Os partidos políticos não conseguirão, mesmo que queiram, clarificar a questão dos financiamentos públicos. É aliás ridículo permitir que o Parlamento pague os vencimentos de assessores, mas proíba que esses assessores trabalhem para o partido. Como se trabalhar para o Grupo Parlamentar não fosse trabalhar para o partido!
Em teoria, os partidos políticos são perfeitamente capazes de resolver a corrupção e de legislar em conformidade. O problema é que são homens e mulheres que fazem os partidos. Mesmo os que lutam contra a corrupção. Na verdade, assiste-se, neste domínio, à síndrome da duplicidade desportiva: pode-se destruir, matar e roubar, desde que os autores sejam amigos e os prejudicados adversários. Outra regra a seguir pelos amigos: não ser visto pelo árbitro, pela polícia ou pela justiça! Tal como o futebol, a política partidária pode ser destituída de moral. Roubar não é necessariamente mau, desde que não se veja. E não é muito diferente do capitalismo: tudo é possível, desde que seja bem feito! E é absolutamente igual ao comunismo: desde que lucrem os amigos e sejam prejudicados os inimigos.
A situação portuguesa, no que à justiça diz respeito, é de tal modo caricata que é frequente ouvir opiniões desesperadas. Ao lado da “pequena justiça”, dos milhares de casos resolvidos todos os dias nas comarcas, há a “grande justiça”, a das causas célebres, dos grandes bandidos e das pessoas importantes. Esta última oferece todos os dias o espectáculo conhecido de adiamentos, chicanas, atentados aos direitos dos cidadãos (sejam as vítimas, sejam os arguidos), atrasos, prescrições e toda a espécie de intervenções mais ou menos ilícitas que tornam a justiça dos poderosos uma paródia. E não se vê sequer o princípio da reforma.
Tanto no caso da corrupção, como no da crise da justiça, tão ligados um ao outro, há um aspecto interessante, mas que dificulta ainda mais a sua resolução. Os meios tradicionais, leis, mudança de responsáveis, eleições legislativas, dissolução do parlamento e moções de censura, nada resolvem. Aquelas crises não estão ao alcance dos meios tradicionais da vida política partidária. Para eles se exige e espera a intervenção de instituições especialmente dotadas com capacidade de intervir ou de influenciar. À cabeça, evidentemente, o Presidente da República. Mas também instituições públicas com especial autonomia, como sejam, entre outras, as magistraturas, as polícias, a Academia, o Tribunal de Contas, a Provedoria de Justiça e a Autoridade Fiscal. Até as organizações patronais e sindicais poderiam colaborar. Além da decisiva intervenção da comunicação social. Se, nestas áreas e nestas instituições, em democracia, não há iniciativas importantes de debate e de exercício de influência e pressão, podemos ter a certeza de que vamos viver décadas com a corrupção crescente e a justiça em declínio. Curiosamente, estão ligadas uma à outra. Uma não se resolve sem a capacidade actuante da outra.
A democracia partidária não é capaz de resolver a questão da corrupção, pela simples razão de que os partidos são seguramente os primeiros entre os autores e os beneficiários. Também não é capaz, nem deve tentar, resolver a crise da justiça, pela razão evidente de que a justiça necessita de autonomia e sobretudo de independência dos magistrados em tribunal. Mas é decisivo saber que a justiça, não tendo relações com a democracia partidária, deve submeter-se ao princípio da democracia e do Estado de direito. Dramaticamente, a crise da justiça ajuda ao vigor da corrupção. Quer isto dizer que a sociedade, as suas instituições, as suas forças intelectuais e morais, a opinião pública e as aspirações de muitos, são chamadas a procurar soluções e a encontrar o “caminho das pedras” para estas tarefas de que tanto depende a nossa liberdade.
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Público, 15.7.2023
1 comentário:
Tudo se constrói de pequenino.
Tolera-se o pouco, constrói-se o muito.
Tolerância é a palavra de ordem que vem construindo a bandalheira de que todos se queixam em termos que aparentam tratar-se de uma inevitabilidade, como de facto o é.
Reforma da Justiça:
Sem dúvida que prover de ‘autonomia e sobretudo de independência dos magistrados’ é essencial, mas onde a responsabilização dos incompetentes, dos descuidados, dos facciosos, dos corruptos, senão a uma ‘assembleia de “homens bons”’, que ao saber agreguem carácter e valores éticos?
E o que esperar quando é aos partidos, equiparados a ‘autores ou beneficiários da corrupção’ que é cometida a nomeação dos membros dessas assembleias, onde as mordomias garantem reformas douradas?
Como criar e estruturar modelos associativos e de alternativa participação cívica se todos o cargos de mais alto significado ético são ocupados via convenções partidárias?
Sobra o Presidente semipresidencialista, não raro com carreira de mero chefe partidário?
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