Dizem que os pequenos gostam de se considerar grandes. É possível. Mas tal afirmação, mesmo se verdadeira, não chega para compreender a tendência de muitos portugueses para a fantasia narcisista. Sobretudo a imerecida. De presidentes a trabalhadores e estudantes, tantos comungam nesta atitude! Todos garantem que somos os melhores do mundo em qualquer coisa. Ou até em muitas coisas. No futebol, para lá vamos a passos largos, com os melhores treinadores e os melhores jogadores do mundo. No atletismo, na natação, no hóquei em patins, no ténis de mesa, no judo e no ciclismo, para lá caminhamos, se é que já não somos os melhores do mundo em várias modalidades. Na vela, no hipismo e na tourada, estivemos sempre entre os melhores do mundo, mesmo se éramos absolutamente de segunda ou terceira categoria. Não há dúvidas quanto ao facto de os vinhos portugueses, sobretudo o do Porto, serem os melhores do mundo. Tal como o peixe, a cortiça e o azeite, todos sem igual. As duas cidades portuguesas mais famosas, Lisboa e Porto, são, sucessiva e alternadamente, os melhores destinos turísticos do mundo. E a nossa natureza é sem igual: já os autores do “Guia de Portugal”, dos anos 1920, consideravam que a “paisagem arbustiva” do Gerês e o “céu estrelado português” eram os melhores do mundo. Hoje, são mais as praias, únicas e melhores. Na religião, além dos reis, feitos “majestades fidelíssimas” pelo Papa, temos a aparição e o santuário de Fátima entre os melhores. E são seguramente portugueses os melhores católicos, como, aliás, os comunistas, igualmente os melhores (e últimos…). Tivemos também o melhor fascismo e a mais doce polícia política. Os Descobrimentos portugueses foram os melhores do mundo, tal como a respectiva colonização, exemplo e modelo de bons costumes. A Constituição de 1976 foi e ainda é designada como a melhor do mundo, a mais avançada e progressiva. Aliás, pouco antes, a revolução de 25 de Abril tinha sido a mais moderna, luminosa e libertadora dos tempos modernos. E a descolonização fora simplesmente exemplar!
Estes mitos têm a vida dura. Uns são atemporais, persistem ao longo das décadas. Outros são próprios de cada época, da República, do Estado Novo ou da democracia. Além de serem nefastos, do ponto de vista cultural, têm uma consequência negativa, a de apagar realizações importantes do país e da sociedade, que, sem serem as melhores do mundo, marcaram os últimos tempos. O país pobre e atrasado dos anos 1950 deixou de o ser. Com século e meio de atraso, o analfabetismo quase desapareceu. As mulheres desempenham hoje, finalmente, um papel decente na sociedade e deixaram de ser apêndices dos homens. O nível de vida aumentou muito consideravelmente e os portugueses têm agora em casa água, electricidade, telefone, fogão, instalações sanitárias e esgotos, facilidades que a maioria não tinha há cinquenta anos. A mortalidade infantil, uma das mais altas, situa-se hoje num plano adequado. Em vez de apenas vinte mil, algumas centenas de milhares de estudantes frequentam agora o Ensino Superior. Em contraste com os duzentos mil de há cinquenta anos, perto de três milhões de portugueses recebem hoje pensão ou reforma. O Serviço Nacional de Saúde está, em princípio, acessível a todos os cidadãos. Com mais de 3.000 quilómetros de auto-estradas, o país foi conquistado pela rodovia mais moderna. Estes e outros feitos, importantes, parecem por vezes submersos pelos mitos dos “melhores do mundo”.
Ou ofuscados por outros factos pesados e de difícil compreensão. A verdade é que a realidade nega a fantasia. As enormes dificuldades quase superam as conquistas. A desigualdade social e económica persiste, só esbatida por um colossal esforço de redistribuição social. As taxas de pobreza mantêm-se em planos inadmissíveis, com especial relevo para a elevada proporção de crianças e jovens em situação de pobreza. Os serviços públicos dão todos os dias sinais de ineficiência, desumanidade e desconsideração no atendimento. As filas de espera nos hospitais, nos centros de saúde, nos departamentos de finanças e impostos, nas lojas do cidadão e outras instituições crescem a olhos vistos. Os transportes públicos estão a chegar ao ponto de ruptura e de verdadeiro perigo para a segurança. Entre greves, inoperância e burocracia, os tribunais mostram-se cada vez mais incapazes de assegurar níveis aceitáveis de justiça. Ricos e poderosos passeiam-se pelo Estado e pela sociedade com a certeza da impunidade e a garantia do privilégio. Interesses privados, públicos e partidários lutam e associam-se nas melhores empresas portuguesas, destruindo umas e desbaratando outras, perante a inoperância ignorante ou cúmplice de uma Justiça imprópria para a democracia. Imigrantes ilegais, traficantes de mão-de-obra e criminosos de vários ramos aproveitam a complacência única na Europa para inundar as empresas e os alojamentos clandestinos de desgraçados e miseráveis das sete partidas do mundo. Portugal caminha, despreocupadamente, para uma grave crise de ilegalidade e imigração.
É certo é que estamos a viver momentos particularmente difíceis, de que as autoridades políticas não parecem convencidas. A Direita arrogante e a Esquerda presunçosa, ambas autoritárias, não estão disponíveis para olhar com isenção e humanidade para os serviços públicos. Estes, que poderiam ser o grande trunfo de uma sociedade mais justa, mesmo se pobre ou remediada, estão a entrar em crise séria de competência, de eficácia e de humanização. Há cada vez mais a certeza de que impera a falta de cuidado e de atenção perante as mais delicadas situações sociais e diante dos mais frágeis e vulneráveis. Há desprezo pelos pobres, pelas filas de espera na saúde, pelo incómodo nos transportes, pela vida urbana desconfortável, pelos bairros suburbanos esquálidos e pelos imigrantes ilegais explorados. Os trabalhadores mais qualificados e os técnicos diferenciados, incluindo académicos e cientistas, vivem já uma crise de oportunidades. Insiste-se no modelo de economia de mão-de-obra barata. Os dirigentes da política e da economia esforçam-se por distribuir, com o que escondem as suas dificuldades em estimular o investimento e a criação de mais riqueza.
É difícil viver em Portugal. É o que, ao partir para a Europa, os emigrantes portugueses nos dizem. Espera-se que não haja ainda quem garanta que temos ou somos os melhores emigrantes da Europa!
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Público, 29.7.2023
1 comentário:
Dívida e subsídios deslustram muito do recentemente realizado.
A obra colectiva fornece-a sobretudo o passado que instantemente o corretês vai procurando arrasar.
Reconhecida a mediocridade geral, têm-na por tão absorvente que só o mérito reconhecido no estrangeiro é acreditado; nos feitos desses poucos se procuram sinais dessa chama que se acredita ter existido.
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