A Comissão Parlamentar de Inquérito à TAP acaba de dar um excepcional contributo para a consolidação do sistema democrático tal como o conhecemos. A actual Assembleia da República, isto é, o actual Parlamento prestou assim um serviço inestimável ao aprofundamento da democracia parlamentar na sua tão singular versão portuguesa. Revelando excepcionais qualidades criativas, a Assembleia da República vai criando a figura do Governo Extraparlamentar, epíteto até agora reservado aos grupos marginais e aos movimentos sociais, mas a partir de agora prescrito para o Governo da República que, com enorme facilidade, se esquiva aos controlos, ao inquérito e à fiscalização parlamentar. Tudo isto acontece, como sempre sucede em regimes autoritários, com a cumplicidade do próprio Parlamento. A recordar as vítimas que concordam com os seus carrascos.
Chega ao fim uma das mais infames operações que a democracia portuguesa proporcionou. Ou patrocinou. A Comissão Parlamentar de Inquérito foi autora de gesto inédito ao transformar em herói o autor do mais flagrante abuso de poder que se conhece na história recente. O ministro que decidiu, individualmente, onde ficaria o futuro aeroporto de Lisboa, foi condenado e censurado, demitiu-se, foi perdoado e readmitido, para voltar a ser demitido por se ter envolvido em nova aventura inconsequente.
Por causa da TAP, do Aeroporto, dos caminhos de ferro e dos transportes urbanos ficamos a saber que é aceitável que o governo, desde que tenha a maioria, interfira nas empresas, nomeie e demita, substitua e exonere, indemnize e recompense quem entender, quando quiser e como pretender.
Toda a operação do inquérito à TAP foi riquíssima em ensinamentos e soluções para o funcionamento do processo democrático. Depois da Constituição, do Estatuto de Deputado, da Lei Orgânica da Assembleia da República, do Regimento da Assembleia da República e dos Regulamentos Internos dos Grupos Parlamentares, são estes factos e estas práticas que dão cor e vida ao regime que temos e à democracia em vigor.
No seguimento e no aperfeiçoamento das tradições parlamentares, os trabalhos da comissão e sobretudo o seu projecto de relatório final, em vias de aprovação, vão deixar marcas muito sérias e muito negativas no regime político português. Os factos consumados, as capacidades de escrutínio, os direitos e deveres de fiscalização e inquérito, a isenção das análises e das conclusões e as fronteiras de competências entre Partidos e Deputados, assim como entre Governo e Parlamento, são seguramente irreversíveis, isto é, jamais um partido maioritário (ou coligação) ou um governo em funções aceitarão agir de modo diferente, diminuir os seus poderes e reduzir as suas prerrogativas.
O mal que se fez veio para ficar. O Parlamento concede ao Governo licença para agir, fazer o que entender, ocultar, mentir, disfarçar e abusar de poder. Numa expressão consagrada, licença para matar. Seja o beneficiário um governo de maioria absoluta, seja de coligação maioritária. Não se vê como é possível que um partido abdique de tão enormes e medonhos poderes! São estes episódios que criam as tradições. São estes acontecimentos que dão significado e configuração real às leis.
Os deputados, individualmente considerados, perdem totalmente os seus direitos e abdicam das suas competências, a favor dos Grupos Parlamentares, isto é, dos partidos. A maioria parlamentar, absoluta ou de coligação, perde os seus poderes a favor do governo. Não só as leis aprovadas traduzem a vontade das maiorias, o que é normal, mas também as fiscalizações e os inquéritos à acção do governo e das autoridades públicas traduzem exclusivamente a vontade do governo. O que já não é normal.
Confirma-se que a função do deputado é a de votar o que o seu grupo entende. E este aprovar o que pretende o partido. E este último o que deseja o governo. É uma regra de três muito simples.
Assegura-se que a disciplina partidária é a regra de vida do Parlamento. Só excepcionalmente, em processo doloroso e complexo, por motivos estranhos, designadamente religiosos, é que um deputado pode solicitar a liberdade de expressão e de voto. Digo bem: solicitar a liberdade, também designada por liberdade de consciência.
Fica garantido que o governo da República pode interferir como entende na gestão das empresas públicas e de qualquer outra instituição pública, autónoma ou não. Aceita-se que o governo pode nomear, demitir, substituir, despedir e indemnizar os gestores públicos, como entende, quando entende, pelas razões que entender, sem dar explicações, sem argumentar e sem revelar publicamente os motivos. Considera-se normal que os governantes possam mentir, ocultar e mudar a versão dos acontecimentos, sem sofrer as consequências. Estabelece-se que os governantes podem acusar outrem, despedir, intimidar, caluniar e ameaçar com as polícias e os serviços secretos os que não defendam estritamente os seus interesses pessoais ou políticos. Admite-se que os governantes sejam capazes de, sem penalização ou crítica, fazer favores a gente do seu partido, conceder privilégios, indemnizar amigos e recompensar quem os ajuda, tudo isto sem fiscalização. Confirma-se que o governo pode retirar da esfera do Tribunal de Contas todos os assuntos e negócios que lhe interessem ou que o incomodem.
São estas práticas, na fronteira da legitimidade e da legalidade, que dão real significado às leis e às regras. Da constituição à legislação e ao regimento da Assembleia da República, os textos legais e formais são cumpridos de diversa maneira, até mesmo de um modo ilegítimo. Ou de legalidade duvidosa. O que esta Comissão Parlamentar de Inquérito trouxe de fundamental é uma leitura e uma interpretação das leis e dos regimentos. O Governo tem cada vez mais licença para matar, gastar, despedir, emprestar, dar e ocultar. Até chamar a polícia. E os serviços secretos. Na defesa dos seus, governo e grupo parlamentar unem-se para lá da fronteira da democracia e da legitimidade.
Há quem pense que este destino da democracia se deve à maioria absoluta. É possível que seja essa a aparência. Mas, na verdade, o que está em causa é o conceito de deputado ou a essência do voto. Os procedimentos autoritários específicos desta operação TAP são tão possíveis com maioria absoluta de um partido como com o voto de dois ou de coligação. Se os direitos e os deveres do deputado, perante o seu eleitorado, são os que hoje existem, é indiferente haver maioria de um ou de dois partidos. Só a liberdade dos deputados faria a diferença.
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Público, 8.7.2023
1 comentário:
«Só a liberdade dos deputados faria a diferença» se aos partidos for retirada a exclusividade de os nomear.
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