sábado, 14 de janeiro de 2023

Grande Angular - Operação de encenação e coreografia

 Pelos vistos, foi criado um “mecanismo de escrutínio dos governantes” e foi elaborado um “questionário de verificação prévio dos candidatos”. Pasme-se! O que se tem passado com as nomeações e demissões do governo, e agora com a criação deste “mecanismo”, deixa toda a gente assustada. Sejam os políticos culpados, com receios, ou os inocentes, com inquietação. Mas também cidadãos comuns. Entre estes, os que não acreditam nestes expedientes para desresponsabilizar quem escolhe. Os que imaginam que se trata de mais uma praxe para tornar a política uma actividade esotérica e reservada a uma elite partidária. Os que pensam que esta coreografia serve para restaurar uma virgindade perdida. Os que imaginam que estas regras servem para delimitar o que se pode fazer para escapar.

 

Verdade é que nada nem ninguém parece inocente. A começar pelo facto tão simples de que este procedimento desautoriza as instituições. O que se inventou é um prodígio de encenação. O Governo aprova um questionário que pretende aplicar sem que tenha força de lei. Enumeram-se dúzias de perguntas, deixando de fora dezenas. Preparam-se para fazer as perguntas por escrito, pedindo uma resposta de igual teor, mas cujo conteúdo fica privado, sem que se aceite o princípio de que os documentos deste género são necessariamente públicos. Nada justifica o secretismo. Se são invocadas a intimidade e a privacidade, os documentos não deveriam existir. Se o argumento é o interesse do Estado, então é mentira.

 

Tanto a linguagem oficial como os comentários jornalísticos mencionam, em maioria, os “candidatos” a lugares do governo. Eis mal-entendido típico de falsos beatos. As pessoas convidadas para o governo não são “candidatos” a coisa nenhuma. A decisão não é deles. O processo não é aberto. Não há vários candidatos ao mesmo lugar. As posições em causa não estão a concurso. As pessoas são seleccionadas, escolhidas e nomeadas por quem de direito. Caso aceitem, as pessoas seleccionadas deveriam submeter-se a procedimentos institucionais definidos pela lei e não serem obrigados a responder a questionários arbitrários e intrusivos.

 

Percebe-se o entendimento dos autores deste questionário. O que está em causa é dinheiro. Dinheiro público nacional e europeu. Dinheiro e subsídios a obter. Facilidades para vender. Deveres para comprar. Lucros para amealhar. Maneira de receber dinheiro através de isenções, favores e procedimentos de legalidade duvidosa e aparência legal. Uma só palavra: dinheiro.

 

Quer isto dizer que os autores deste mecanismo, assim como os que com ele concordam, não consideram mais nenhum gesto condenável ou acto que diminua as capacidades do seleccionado, aqui tratado por candidato. Ganhar dinheiro abusivamente parece ser o primeiro e último pecado. Nada é mais grave. Noutras palavras, é a principal razão pela qual se é castigado e se perde a capacidade para exercer cargos públicos. Parece pouco. Para além de crimes, há muito mais, não declarado e não em processo de justiça, que deveria ser considerado.

 

A violência doméstica deveria contar: bater na mulher, nos pais ou nos filhos. O abuso de menores também. O uso de violência junto de amigos deveria figurar na lista. O insulto e a calúnia também. Acidentes de viação não ficariam fora. Atentados contra a liberdade de outrem também não. Atitudes racistas. Pensamentos fascistas. Simpatias terroristas. Afinidades comunistas. Tudo deveria ser analisado pelo Primeiro Ministro. 

 

Com o andar dos tempos e com as novas ortodoxias, devemos ainda estar preparados para novas exclusões, isto é, para mais motivos de exclusão da vida política. A frequência de touradas, o consumo de álcool e tabaco, o uso de haxixe e outras substâncias, algumas preferências sexuais, assim como o abuso de alteradores de consciência deverão ser devidamente declarados ou sobre eles devem ser recolhidas informações adequadas. 

 

Apesar da fúria regulamentadora, ficam de fora múltiplos rendimentos que não se percebe se estarão abrangidos. Que dizer de direitos de autor relativos a obras de arte, peças de música, livros, artigos de jornal, ensaios, conferências e sermões? Podem ser trazidos à colação? De que modo comprometem o futuro ou o pretérito governante? Que dizer de prémios de concursos e lotarias? E as bolsas de estudo obtidas pelo próprio ou por seus familiares: que vínculos criam com a actividade do seleccionado?

 

O mais complicado parece ser o que fazer com a cunha. O empenho. O favor. O jeitinho. Como se pode castigar quem mete cunhas, quem aceita, quem beneficia e quem favorece outros através de cunhas? E que consequências pode ter para um político, hoje, uma cunha que meteu ou de que beneficiou há dois anos? Ou dentro de dois anos uma cunha que um político meteu quando ainda o era?

 

Como olhar para as nomeações? Do próprio ou de outros. Dos amigos, correligionários e familiares? As nomeações, da conveniência de serviço à confiança política, são a forma mais corrupta e mais corruptora do exercício do poder político. É possível que sejam mais danosas para a sociedade e para a democracia do que muitos gestos que envolvem directamente rendimentos pecuniários. Como agir, nestes casos? Como elaborar questionários? Que perguntas devem ser feitas aos seleccionados aqui designados por candidatos?

 

Sobram ainda as perguntas inevitáveis. Para que serve o Primeiro Ministro? Não é para escolher, inquirir e designar? E para tomar a responsabilidade das suas escolhas? Para que serve o Tribunal Constitucional? E os tribunais? E o Ministério Público? E o Tribunal de Contas? E a Autoridade Tributária? E as polícias? E sobretudo, acima de tudo, para que serve a Assembleia da República? Não é justamente para fiscalizar e escrutinar?

 

Uma coisa é certa: todos estes procedimentos dependem ou devem depender das instituições. O recurso a entidades aberrantes, do género do “mecanismo” agora criado, não resolve o problema, tem consequências nefastas e não reforça a democracia nem o Estado de direito. Uma e outro, pelo contrário, ficam dependentes do arbítrio político e da força de quem exerce o poder.

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Público, 14.1.2023

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