O semipresidencialismo é uma forma de regime arriscada. Muitas vezes inútil, geralmente ambígua, quase sempre equívoca! Foi uma invenção de académicos, com uma aparência de sofisticação e inteligência. Por isso, era atraente. Na verdade, olhando bem para os factos, veio a revelar-se uma ilusão. Ou antes: os seus méritos académicos são certos, as suas vantagens políticas reduzidas.
Consta que o regime francês, a partir do presidente De Gaulle, seria o mais importante caso de semipresidencialismo. A República de Weimar seria um exemplo, além de dois ou três outros que confirmavam a teoria. Entres estes, Portugal evidentemente. Hoje, os manuais insistem em garantir que há várias dezenas de países, incluindo africanos e asiáticos, com regime semipresidencialista. Pode-se admitir a ideia, mas em geral não correspondem à realidade. Em grande parte trata-se de regimes presidencialistas com uns adornos. Ou parlamentares com um vago correctivo, a começar pela eleição directa do Presidente e pela faculdade de dissolução do Parlamento.
A história portuguesa do semipresidencialismo é feita de sarilhos e conflitos. Já quase esquecemos os tempos passados, mas o choque entre Presidente e Governo esteve presente. Por vezes, com acrimónia política e desgaste institucional. Quase sempre com perda de tempo e de oportunidades. A competição e o conflito foram a regra.
Durante quarenta anos, com quatro Presidentes e vinte Governos, com várias maiorias ou coligações, sempre houve querelas pouco úteis para o país e para a democracia. É tipicamente nacional: entre dois modelos fortes ou claros, presidencialista ou parlamentar, escolhemos o que é assim-assim. Nem uma coisa nem outra, com os defeitos de ambos. Juntámos as duas fraquezas. Tal como a predilecção pelos governos minoritários e o horror aos governos maioritários.
Dito isto, é forçoso reconhecer que houve, nos últimos anos, uma novidade importante: a ausência de quezílias institucionais! O Presidente Marcelo já exerceu o seu cargo com um governo de quase coligação, um governo minoritário e um governo de maioria absoluta. Em qualquer dos casos, o veredicto eleitoral legislativo e parlamentar impôs-se e o Presidente respeitou-o. Apesar de todos os partidos que governaram serem de doutrina e política diferentes das suas, o Presidente ajudou. Assim vivemos uma paz institucional rara, talvez inédita.
Mais ainda, desde sempre Marcelo Rebelo de Sousa decidiu utilizar o seu cargo para apoiar o governo e o Parlamento. Por esse feito, merece felicitações. Fê-lo sem reservas mentais, nem armadilhas. A ponto de ser corrente dizer que o Presidente apoia demais o Governo, em vez de o vigiar ou compensar! Os socialistas, beneficiados, agradecem e reconhecem. Mas todos os outros partidos e muitos comentadores insistem em ter saudades dos tempos em que havia conflitos. E todos parecem querer absolutamente que o PR seja um fiscal, um polícia ou um contrapoder.
Ora, não é para isso que se elege o PR. Este é eleito para acrescentar legitimidade e solidez ao edifício do Estado democrático. Não para vigiar, sabotar, contrapesar ou fiscalizar. Nesse aspecto, este PR foi o que fez a melhor escolha e que melhor compreendeu o seu papel.
Não sabemos o que se segue, mas o caldo parece estar entornado. As boas relações entre Marcelo e Costa estão toldadas. Entre o PR e o Governo estão crispadas. Não se sabe bem de quem é a culpa, se de um ou se do outro. Ou até dos dois, como no Tango. Mas é seriamente de lamentar que este bom exemplo de colaboração não tenha seguido até ao fim.
Não elegemos o PR para vigiar ou fiscalizar. Para isso há o Parlamento, o Tribunal Constitucional, a Justiça em geral, o Provedor de Justiça, o Ministério Público, o Tribunal de Contas, até as polícias. Sem falar na oposição. E sem esquecer um dos mais importantes, a imprensa livre. A concepção do Presidente como contrapeso é doentia! E perversa! Boa receita para telenovela, mas má solução para a democracia e para o governo do país.
Os mecanismos existentes e que poderiam fortalecer o sistema de peso e contrapeso ou de controlo e fiscalização estão à disposição de todos. Mas é verdade, no entanto, que os nossos constituintes nunca quiseram optar por métodos mais claros e mais eficientes, como, por exemplo, a segunda câmara, os direitos da oposição parlamentar, o sistema eleitoral uninominal e o recurso a iniciativas populares e a referendos. Prefere-se sempre uma solução híbrida e esquisita, como este nosso sistema proporcional, a moção de censura construtiva (que está na forja há décadas…), os governos de minoria e coligação e a tentativa de recusa ou impedimento dos governos de maioria. Além disso, sempre se preferiu uma vantagem leonina e desleal da maioria relativamente aos restantes grupos parlamentares.
É bem possível que Marcelo seja o presidente que melhor compreendeu o papel de apoiante e de colaboração. Louvado seja! Mas esse clima acabou, vá lá saber-se exactamente porquê. O Presidente poderia ter incomodado o Governo e o PS, para ajudar o seu antigo partido, para simpatizar com a direita (sua origem política) e para favorecer novos agentes políticos. Não o fez. Por bondade ou circunstância, por necessidade ou dever. A verdade é que não o fez. O Governo, enquanto lhe convinha, agradeceu. Agora, com as crises dos últimos dias, tudo pode acontecer. Mas o clima de colaboração acabou. Para mal de todos nós. E para bem dos que procuram a felicidade deles na instabilidade dos outros.
A crise política e governamental das últimas semanas está directamente ligada a esta questão das relações entre órgãos de soberania. A tal ponto que o Primeiro-Ministro sugeriu que as futuras nomeações de membros do governo sejam precedidas de um escrutínio especial. Esta proposta fica a constar definitivamente do anedotário inesquecível da política portuguesa. O Primeiro-ministro quer criar um sistema de controlo da moralidade, das biografias, dos currículos, do registo criminal e do cadastro dos membros do governo que propõe e que o PR poderá ou não aceitar, ficando assim definitivamente co-responsável. O assunto não merece sequer ser analisado.
Os acontecimentos na origem da crise de governo não são episódicos e triviais. São coisa séria, para dizer o menos. Não são fortuitos e excepcionais. Fazem parte de hábitos e de costumes. São as regras vigentes. Servem redes criadas e alimentadas. Constituem sério veneno contra a democracia. Não se tratam com truques e armadilhas.
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Público, 7.1.2023
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