Basta ler jornais, ouvir rádio e ver televisão. O PRR está aí para gastar. Apesar da guerra na Ucrânia, da persistente pandemia, do rescaldo dos fogos florestais e da balburdia inédita do SNS, mau grado estas e outras grandes dificuldades, um sinal está já visível no firmamento: euros para distribuir. Benefícios a administrar. Subsídios a espalhar. Não obstante a inflação, talvez até por isso mesmo, toda a gente se prepara para gastar. O que não é mau, nem defeito. Só que… para gastar, é preciso criar riqueza!
É um dos grandes mitos da história e da política nacionais: os portugueses são incapazes de criar riqueza! Trabalham (e muito) com o dinheiro dos outros, mas os lucros vão-se. Trabalham (ainda mais) no estrangeiro ou sob as ordens dos outros, mas os rendimentos desaparecem. Trabalham (com gosto) graças aos dinheiros que os outros (a União Europeia) nos enviam, mas gastam muito e investem pouco. Se, finalmente, há momentos de prosperidade, é sempre graças ao estrangeiro. Foram os recursos e as matérias primas de África, da Ásia e da América Latina. Ou os empréstimos ingleses e franceses. Ou ainda os investimentos alemães, ingleses e americanos. Foi a emigração para o Brasil, a América do Norte e agora a Europa. Assim como tivemos a Europa em todas as suas versões: a EFTA (Associação Europeia de Livre Comércio), a CEE (Comunidade Económica Europeia), agora a UE (União Europeia). São, finalmente, oligarcas chineses, russos e angolanos. Verdade é que os rendimentos e as riquezas que vêm do estrangeiro ficam nas mãos de poucos ou ao estrangeiro regressam.
Os mitos não ficam por aqui. As grandes empresas portuguesas (indústria, bancos e serviços) são estrangeiras na origem ou à chegada. A maior parte das grandes empresas e dos grandes serviços privatizados e reprivatizados, depois da revolução de Abril, ficou nas mãos de estrangeiros, tendo as empresas sido desvalorizadas e descapitalizadas. Estas empresas são submetidas aos interesses das multinacionais. Os estrangeiros só investem em Portugal em condições leoninas, exigem benefícios excepcionais, condições especiais e facilidades fora do normal.
Mas há mais. Os grandes empresários portugueses são podres de ricos, têm o dinheiro lá fora, pagam poucos impostos, são iletrados e egoístas, situam-se sempre à direita e sobretudo dependentes do Estado e dos favores políticos. Os trabalhadores portugueses são analfabetos e mandriões, só mandados à força e dirigidos por estrangeiros, têm inveja dos ricos e não defendem as suas empresas. As classes médias, as mais prejudicadas de todas, são miseráveis, detestam os ricos e os pobres, não sabem poupar, querem fugir para o estrangeiro. Todos eles, empresários, trabalhadores e classes médias, só pensam em si, não têm consciência do bem comum e acham sempre que tudo o que é estrangeiro, vive no estrangeiro ou vem do estrangeiro é sempre melhor.
Finalmente, o Estado cobra impostos a mais, gasta tudo consigo próprio e com os seus funcionários, que aliás são mal pagos. É incapaz de bem gerir e bem administrar. É vítima permanente da corrupção, está nas mãos dos interesses, das corporações, dos sindicatos e das empresas privadas. Não é capaz de bem administrar a saúde, a educação, a segurança social e a justiça, sectores onde reina a desigualdade social e nos quais o Estado português gasta mais do que a maior parte dos Estados europeus. Mas é nesses mesmos sectores, onde se revela um permanente caos, que os mais desfavorecidos são sistematicamente preteridos.
Portugal nunca soube criar riqueza de modo durável e estável. Nunca investiu com o sentido do tempo e das gerações futuras. Os Portugueses quiseram sempre ganhar depressa, muito e rapidamente, explorando e roubando se fosse necessário, desde que fosse no estrangeiro e fácil. Especiarias, escravos, açúcar, ouro, pedras preciosas, café, diamantes, petróleo e outras matérias primas fizeram riquezas fáceis e rápidas, mas frágeis e inconstantes.
Muito do que precede é mentira. Ou enganador. E muito é verdade. Ou factual. Mas o problema é real: há incapacidade para criar riqueza em Portugal. Pelo menos em proporção do que se gasta, do que se necessita ou do que se espera. A legislação de atracção de investimentos estrangeiros é tosca, insuficiente, parola e venal. A actuação dos governantes e dos empresários junto dos meios financeiros mundiais dedicadas ao investimento é medíocre e pedinte. As condições legais e fiscais de desenvolvimento de uma actividade lucrativa em Portugal são difíceis, pouco atraentes e até repelentes. Os parceiros portugueses para grandes empresas e grandes investimentos estrangeiros são pouco experientes, muitas vezes tacanhos e quase sempre débeis. O Estado português, que cresce pouco, mas engorda muito, não tem agilidade para atrair investimento, ser flexível, garantir estabilidade e segurança. O Estado refugia-se no que sabe fazer, a burocracia, a corrupção e o favoritismo.
O PRR, Programa de Recuperação e Resiliência (designação europeia estúpida e saloia), é sinal exacto de que vêm aí Euros. Como se sabe e viu, não é a primeira vez que tal acontece. O governo faz propaganda todos os dias e anuncia medidas que são um verdadeiro bodo aos pobres. A oposição de centro e direita tenta antecipar-se e já propôs gastar, ainda mais do que o governo pretende, com a saúde, a educação, a segurança social, os idosos, os pobres, os sem abrigo, os imigrantes, os grupos do rendimento mínimo, os desempregados… A esquerda quer gastar ainda mais, evidentemente, liquidando, de passagem e preferência, a economia privada. Todos, aliás, governo, direita e esquerda, exigem uma acção imediata para contrariar a inflação, minimizar os efeitos dos aumentos do custo de vida e apoiar os aumentos das rendas de casa. Mas poucos, muito poucos, propõem ou exigem que se crie riqueza.
A pergunta é simples: quem vai pagar? Aonde há recursos financeiros para distribuir, para pagar as benesses e os benefícios, para sustentar aumentos de salários, subsídios e pensões, assim como para custear o aumento das despesas com a saúde, a educação e a segurança social? É tão estranho vivermos num país onde a principal preocupação é a de gastar dinheiro, mas nunca ou quase nunca de fazer dinheiro, criar negócios, desenvolver actividades e, numa só palavra, criar riqueza!
Uma coisa sabemos: gastar sem criar pagar-se-á muito caro dentro de pouco tempo.
Público, 3.9.2022
1 comentário:
Da lei constitucional sobressai a enumeração espasmódica dos direitos e da lei comum a obscuridade que sustenta o relaxe que garante a frouxidão dos deveres.
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