É um velho lugar comum: “A educação é muito importante”. Ou um nariz de cera: “A escola tem um papel decisivo”. Escolha da profissão? Tem de ser na escola. Criar uma família? Aprende-se na escola. Ter boas maneiras e boa formação? Depende da escola. Ter um comportamento cívico decente, respeitar os outros e cumprir as leis? É na escola que se começa. Luta contra a droga? Começa na educação. Saber exprimir os seus sentimentos e a sua sexualidade, escolher o seu género? Tudo se constrói na escola.
Diz-se que é na escola que se toma consciência da família e da pátria, da classe e da etnia. É ali que se percebe a desigualdade social, que se aprende a prestar atenção aos pobres e que se tem experiências de solidariedade. É ainda na escola que se tem as primeiras noções de cultura e das artes e que se dá largas à criatividade.
O que muitos entendem por civismo deveria, dizem, aprender-se na escola: pagar impostos, cumprir os seus deveres, assumir responsabilidades perante a comunidade, circular pela direita, deixar passar quem tem pressa, dar o lugar aos mais velhos e ser cortês nas ruas e nos centros comerciais.
É ainda na escola onde se começa a zelar pelo ambiente, a olhar para a ecologia, a respeitar a natureza, a cuidar dos animais e a contribuir para a limpeza das cidades e dos campos.
Em poucas palavras, a escola seria o berço da sabedoria e da consciência, o ninho do civismo e do bom comportamento, o alfobre de virtudes e da rectidão.
Nada disto é verdade, ou antes, tudo isto é verdade e também o seu contrário. E por isso há quem pense que a escola é um antro de pecado e crime, local onde se faz sexo e droga, onde se alimentam ideias perigosas, onde se forja uma personalidade insubmissa, onde se ignora Deus e odeia a família.
Mas o mais poderoso argumento a favor de uma escola de valores e de ideologia, que traduza uma ideia do mundo e da sociedade, que seja o viveiro de cidadãos e que fomente o desenvolvimento do civismo e da virtude, consiste na cidadania democrática. À escola compete formar cidadãos. O que quer dizer: educar para a democracia, alimentar a tolerância, fomentar as virtudes cívicas. Dito assim, parece inelutável e consensual. Na verdade, se procurarmos um pouco, rapidamente se verifica que estamos perante uma banalidade perigosa.
Arecente polémica que envolve uma família de Vila Nova de Famalicão foi um bom exemplo da dificuldade deste tema. Na verdade, os pais têm o dever de enviar os filhos à escola. Mas não têm o direito de ajudar os filhos a faltar, sem o que toda a gente poderia fazer objecção de consciência a qualquer disciplina. O problema não reside aí, mas sim no programa, naquele programa, que deveria ser banido pelas vias legais, políticas e institucionais. As autoridades educativas deveriam rever e reformar os conteúdos programáticos da escolaridade obrigatória, a fim de os depurar destas formas aberrantes de autoritarismo dogmático e de despotismo cultural. Assim como proteger a escola destas intervenções minoritárias prepotentes.
Mas então, pergunta-se, a escola não deve ser democrática, formar democratas, desenvolver a democracia? Sim e não. A escola deve ser democrática. Mas não deve ensinar a democracia. Nem formar consciências políticas.
A escola deve ser democrática, estar acessível a todos os cidadãos, sem criar barreiras de qualquer espécie à sua frequência pelos jovens da área de residência. A escola deve ser democrática porque deve dar as informações factuais necessárias à vida em comum, como sejam as regras inscritas na Constituição e fixadas nas leis. A escola será democrática se evitar, tanto quanto possível, todas as formas de doutrinação de ideias políticas, de crenças religiosas ou de quaisquer outros credos ou crenças.
A escola não deve ensinar ideologias de qualquer espécie, democráticas sejam elas, até porque não pode, nem tem de escolher entre democracia avançada, democracia política, democracia cultural, democracia popular, democracia directa, democracia cristã, social democracia ou centralismo democrático.
Da democracia, a escola deve limitar-se às regras e dispositivos constitucionais relativos ao sistema e aos órgãos do poder, aos direitos e deveres dos cidadãos, às garantias das liberdades, à participação eleitoral, ao equilíbrio dos poderes entre instituições, ao acesso à justiça e à defesa dos cidadãos perante ameaças de outros ou do Estado.
A escola deverá, em disciplinas de organização política ou de História, referir a natureza e a forma dos diversos regimes políticos, suas implicações, seus exemplos históricos, mas não deve tomar partido. A escola poderá, nas suas disciplinas de História, aprofundar a evolução dos sistemas políticos, a natureza dos regimes, a história da liberdade e da tirania, mas não deve impor ou condenar ideias.
Aescola não deve doutrinar, nem ensinar nenhuma matéria relativa à vida privada dos cidadãos, às suas escolhas pessoais, às suas preferências religiosas, à expressão dos seus sentimentos, à sua sexualidade ou ao desenvolvimento afectivo da sua personalidade. Os sentimentos não fazem parte da cidadania, não constituem capítulos dos direitos, deveres e garantias dos cidadãos, não fazem parte do elenco de dispositivos constitucionais. Há disciplinas onde essas matérias podem ser tratadas: em Biologia e ciência naturais; em História; em Psicologia e Sociologia. Mas não devem constituir matéria à parte nem disciplinas próprias, de modo a evitar vários perigos. Por exemplo, a doutrinação ideológica ou religiosa. O condicionamento da vida privada e da escolha individual. O contrabando ideológico e cultural ao sabor das modas e do oportunismo dos professores. E finalmente a confusão entre vida privada e vida pública, cuja distinção é crucial para a liberdade individual e a vida em comunidade democrática.
Todos os ditadores e todos os regimes autoritários defenderam sempre uma educação de valores, de princípios, com conteúdos morais e com normas de comportamento, quando não com regras religiosas.
A escola não é nem deve ser uma República clerical, nem um claustro de virtudes, muito menos uma ditadura religiosa ou laica. Tudo o que se queira fazer na escola, artes, letras, jogos, natureza, solidariedade, filantropia, expedições, limpeza de ruas, ecologia e afectos pode ser feito fora das horas de aulas, até nas instalações e com os professores, mas sem leis, sem programas impostos, sem obrigatoriedade e sem avaliação.
A escola deve ser democrática, mas não impingir a democracia.
Público, 13.8.2022
2 comentários:
Tão simples quanto evidente!
Mas a cambada que na História só pode apresentar desastres e ditaduras quer, a propósito de cidadania, introduzir os miasmas que geraram essas tragédias.
Hoje no Público há uma página que estabelece a extraordinária descoberta de que a Constituição da República é um documento político!
Daí que, democraticamente e sem surpresa, tudo caiba na escola doutrinária...
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