Parece o mito do eterno recomeço. Nunca falha. Em momento de pausa. Em vésperas de eleições. Para desviar as atenções e olhar para outro lado. Para esquecer uma crise. Quando não há mais nada para dizer. Para dar a impressão de que se tem uma ideia. Nestas circunstâncias, uma só palavra: Regionalização. Sempre nova e virginal. Fresca e pura, matinal e limpa: eis a Regionalização.
Há talvez trinta ou quarenta anos que se volta à casa de partida. Já partidos desistiram. Presidentes assobiaram para o ar. O povo chumbou o referendo. Muita gente mudou de opinião. Nada disso interessa. A regionalização é sempre uma novidade, uma causa, uma maneira de incomodar o adversário. Em vésperas de eleições, um último trunfo do Primeiro-ministro: regionalização dentro de dois anos!
Quem a defende, agora e sempre, foge a explicar por quê e para quê, não nos revela os objectivos reais, limita-se a proclamações sempre justas. A regionalização é, por definição, uma virtude. Sem conteúdo. Mas com bondade. Mais direitos para os cidadãos, mais igualdade para os Portugueses, governo mais próximo, melhor conhecimento das necessidades do povo, mais democracia, mais desenvolvimento do interior, mais eficácia na decisão, menos burocracia… Eis o rol das virtudes. Nenhuma está provada. Mas esse é o mérito da dogmática: as verdades são o que são, não se demonstram.
Os defensores da regionalização e de todas as suas virtudes não referem, por exemplo, o facto de algumas das mais importantes reformas sociais terem sido de carácter nacional, unificador, como são os casos do acesso à universidade, da alfabetização, da segurança social ou do serviço nacional de saúde. Também não referem o facto de a maior parte dos novos recursos para o desenvolvimento, o bem-estar e a inovação resultarem, não de qualquer bondade da regionalização, mas sim do maior empreendimento nacional, internacional e federal que se conhece, isto é, a integração europeia, os seus fundos e as suas regras de homogeneização.
Para que serve então a regionalização? Por que razões e por que diabo o tema volta sempre como as aves migratórias? Vale a pena aferir as vantagens da regionalização para a resolução das necessidades nacionais e para a resolução dos grandes problemas. Em que é que a regionalização ajuda nas prioridades nacionais? O inventário não é famoso. Vejamos por partes.
Que pode fazer a Regionalização de bem na Justiça? Nada!
Na integração europeia, no exame das políticas europeias, na revisão fundamental das políticas de defesa, de segurança e de imigração? Nada!
Na acção de combate à pobreza, sobretudo à pobreza infantil, na tentativa de diminuição da desigualdade crónica da sociedade portuguesa? Nada!
Nas políticas de integração cultural e social das minorias, dos imigrantes e das populações estrangeiras? Nada!
Na defesa, consolidação e desenvolvimento do Serviço Nacional de Saúde, para a sua maior eficácia e para a sua menor desigualdade? Nada!
Na política demográfica, promovendo a natalidade, amparando o envelhecimento activo, fomentado a actividade útil dos idosos, diminuindo a emigração e controlando ou estacando a imigração ilegal? Nada!
Na formação secundária, técnica, profissional e superior, grande carência da sociedade e dos portugueses? Nada!
No acesso à cultura e à ciência por parte dos jovens? Nada!
No investimento privado, produtivo e de bens transaccionáveis? Nada?
No fomento da exportação, necessidade absolutamente urgente e vital? Nada!
No desenvolvimento da produtividade e da competitividade, deficiência maior da sociedade portuguesa e das estruturas produtivas nacionais? Nada!
Este é o catálogo. Para recordar.
Segundo os seus defensores e sacerdotes, a Regionalização melhora a democracia, descentraliza, aumenta a proximidade do povo, promove melhor governo, estimula a eficácia e traz mais recursos para o desenvolvimento. Tudo isso está por provar, evidentemente. Tudo isso poderia ser feito com o Estado actual e com as autarquias actuais. A começar pela descentralização, que qualquer governo poderia ter promovido, nestes quarenta anos, mas que não fez por razões evidentes de ocupação do Estado central.
Depois de trinta anos de falhanços, de um referendo perdido, de comissões majestáticas, de milhares de páginas de relatórios definitivos e de leis inúteis, vamos talvez recomeçar tudo dentro de alguns meses. Depois também de pelo menos cinco mapas ou desenhos das regiões, facto suficiente para demonstrar que a identidade regional em Portugal é inexistente. Ou pelo menos errática, fluida e nebulosa, como é a sua ideia.
A Regionalização é um biombo que esconde alguma coisa. É um disfarce que mascara. É um pretexto para adiamento. É uma desculpa para a incapacidade dos partidos. É um engodo para aliciar incautos. É uma falsa descentralização. É uma democracia ilusória. É uma tentativa deliberada de diminuir as actuais instituições, o poder local e a identidade nacional, a favor de duas novas entidades, a região administrativa e a federação europeia. A União Europeia procura ultrapassar os Estados nacionais, assim como os poderes locais, em favor dos poderes regionais, com menos força política.
Com as possíveis excepções dos Açores e da Madeira, não há verdadeira identidade em região alguma do país. Não há pressão social a reclamar. Não há reivindicação popular promovendo esta reforma do Estado. Não há instituições regionais sólidas que dêem força à regionalização. Não há tradição histórica regional.
A proposta de mapa regional mais referida é a que prevê cinco regiões: Norte, Centro, Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo e Algarve. É esta a afirmação mais clara da vontade de criar entidades artificiais, sem história, muito menos identidade. Onde estão Trás-os-Montes e Alto Douro, o Douro, o Minho, a Beira ou as Beiras, a Estremadura ou o Ribatejo, para já não falar do Alto e do Baixo Alentejo?
Com eventual excepção das regiões metropolitanas de Lisboa e do Porto, que para nada necessitam de Regionalização, as regiões do interior e do resto do país não têm força própria nem recursos para assumir um papel relevante de desenvolvimento.
A Regionalização é, em Portugal, nos tempos actuais, o maior embuste político que se possa imaginar.
Público, 22.1.2022
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