sábado, 8 de janeiro de 2022

Grande Angular - Património

 O Fórum Cidadania LX, associação que defende a cultura em Lisboa, acaba de prestar mais um serviço ao país: propôs uma providência cautelar contra o Estado por causa da degradação rápida do Palácio Burnay. Há anos que esta associação presta atenção a todos os actos que dizem respeito ao património, geralmente os que lhe fazem mal. Escrevem aos poderosos. Avisam os cidadãos. Recolhem contributos, acolhem testemunhos, apresentam queixas, denunciam e por vez aplaudem.

Aquele palácio, interessante, valioso, tem mais de dois séculos e pertence há oitenta anos ao Estado. Ali viveram famílias ricas, estudantes universitários frequentaram aulas e trabalharam funcionários de um ministério. Há anos que o edifício está abandonado. A degradação é rápida e fatal. Já foram roubadas móveis, artefactos, telas, frescos, azulejos e pinturas.

Ali tão perto, o Palácio da Quinta das Águias e o Paço Real de Caxias mostram bem que não se trata de casos raros: na verdade, todo o país está polvilhado de ruínas, de casas civis, de quintas e palácios, passando por mosteiros, igrejas, escolas, fábricas, estações de caminho-de-ferro… Tudo o que der para hotéis de charme, tem futuro, não tem restauro, mas tem futuro. Se não estiver à mão do turismo fácil, não tem futuro.

Não muito longe, está a recordação das jóias da Coroa roubadas após empréstimo mal concebido. E também por perto, a divulgação recente do facto de terem desaparecido muitas dezenas, talvez centena e meia de obras de arte (sobretudo pintura e fotografia) que pertenciam à colecção do Estado. “Não estão desaparecidas”, segundo a imortal frase da Ministra da Cultura, “estão por localizar” e “necessitam de localização mais exacta”! Sem falar na evaporação de um raríssimo e único daguerreótipo de Dona Maria II.

Se existe sector ou actividade em que o papel do Estado é relevante e deve ser dominante, é bem o do Património. Ninguém tem as responsabilidades, os recursos, a autoridade, os conhecimentos e a experiência necessários ao estudo, à conservação, ao restauro, à protecção e à divulgação do Património histórico e cultural. Não é, infelizmente, o caso em Portugal. Hoje. Nem ontem. Nem antes.

Com raríssimas excepções, nunca a cultura foi prioritária, nem sequer importante para os governos. Num quadro de miséria programada, nunca o património cultural, em todas as suas formas, foi importante, muito menos prioritário. Nunca o património recebeu recursos financeiros à altura. Todos os anos, inexoravelmente, o património degrada-se a olhos vistos: o tempo, a chuva, os parasitas, os ladrões, as obras selvagens, as visitas, os turistas, os construtores mais apressados e tantos outros inimigos agem sempre mais depressa do que o orçamento de Estado, a Administração Pública, os técnicos, os cientistas e os académicos.

No quadro do debate público, absolutamente prioritária parece ser a cultura geral na escola. A cultura geral é o que mais separa as classes, mais desigualdade provoca, mais talento desperdiça e mais falta faz na preparação profissional, técnica e científica. É o contributo mais indispensável para uma educação humanista. Mas essa é uma prioridade da política de educação.

Na cultura propriamente dita, pela urgência, pela despesa, pelos recursos necessários, pela complexidade, pela importância histórica, pelo contributo para a identidade, pela iminência de abandono, pela ameaça de roubo e pela selvajaria dos “eventos”, é evidente que o património cultural é e deveria ser a prioridade indiscutível. Nunca foi. Por este andar, nunca será. Para mal de nós todos.

Tem-se a certeza de que a política cultural do governo, de quase todos os governos, está influenciada por factores insólitos e por estranhas clientelas. Primeiro, as necessidades de consumo da burguesia chique. Segundo, as elucubrações teóricas dos radicais de esquerda, dos marginais das artes e das minorias étnicas. Terceiro, as expectativas eleitorais de uns tantos autarcas. Finalmente, uns sindicatos de profissionais com ligações ténues à coisa cultural, sobretudo a coisa do espectáculo.

O Ministério da Cultura parece uma agência de eventos, comunicação e emprego. Interessam-lhe as “artes performativas”, mais do que tudo. Preocupa-se com o que dá nas vistas, mais do que com o que faz falta. Inquieta-se com o efémero, a moda, o superficial, quase nunca com o essencial, o difícil, o fundamental e o durável. Interessa-lhe o que é demagógico e passageiro, o que parece encantador e toca a corda fácil da moda dos activistas.

A política de cultura dos governos portugueses distancia-se cada vez mais do que é essencial, a favor do que é fácil. A morosa arqueologia fica para trás. A história, as técnicas e as artes de todas as eras, esquecidas. A formação de artistas e artesãos é menorizada. O que realmente interessa é o consumo, a passadeira vermelha, a inauguração do ministro e o noticiário das oito!

Há décadas que se vive este paradoxo: os governos, os partidos e outros membros das elites políticas defendem a prioridade da cultura e, dentro desta, a prioridade do Património. Mas, no momento da verdade, quando se trata de obter recursos, de prever investimentos e de financiar actividades públicas ou privadas, não só a cultura não é prioritária, como o Património é geralmente secundário. É difícil encontrar uma explicação satisfatória para este fenómeno, que tanto pode ocorrer em anos de dificuldades, como em anos de fartura. O que parece ser a mais adequada explicação é a de que a cultura e o Património dão poucos votos. Além de uma certa concepção filosófica e política que faz da cultura uma actividade supérflua, um sector facultativo e uma despesa luxuosa…

Ora, a cultura é uma prioridade nacional, que se deve traduzir em esforços orçamentais consideráveis, em revisão dos currículos educativos e em investimento na formação profissional. Dentro da cultura, o Património é a grande prioridade, dada a sua urgência, a fragilidade, os perigos que a ameaçam, as exigências técnicas e científicas e o seu valor como identidade e carácter. Esta prioridade ao Património deve ser cumprida com mais atenção do que as artes performativas, a criação contemporânea, o espectáculo e a cultura dos “eventos”. 

Em tempos de sociedade global, de homogeneização dos costumes e de frenesim comercial, são a cultura e o património que melhor nos defendem na nossa singularidade, na identidade histórica, na democracia do presente e na liberdade do futuro.  

Público, 8.1.2022

1 comentário:

Jose disse...

Quando em toda a cadeia do poder está gente sem cultura ou em estado de dependência e subordinação ao chefinho mais acima, nada há a esperar.