Terminam prazos e etapas difíceis. Tudo leva a crer que o pior da pandemia já passou. Sobram as suas implicações sociais, económicas e financeiras, muitas delas devastadoras, outras ainda desconhecidas. As eleições autárquicas chegam ao fim, vão deixar marcas e ter consequências em quase todos os partidos. Muitas pessoas e empresas vão gastar meses, ou mais, a apanhar e colar os cacos. Os trabalhos preparatórios para receber os fundos europeus estão praticamente terminados, agora trata-se de “passar pelo banco”, segundo a fórmula consagrada pelo Primeiro-ministro. Tenhamos consciência: é o maior envelope financeiro que Portugal jamais recebeu em toda a sua história. Não haverá outro. O seu mau uso seria trágico.
Foram dois anos de grande dificuldade. Para todos, cidadãos e governantes. Trabalhadores e empresários. Professores e alunos. Sem falar, obviamente, nos médicos, nos enfermeiros e nos doentes. Todos gostariam agora de descansar. Virar a página. Mudar de assunto. Quem não desejaria agora trabalhar, melhorar a sua vida, dar alguma esperança aos filhos e ver recompensado o seu esforço? Quem não aspira a pôr de parte a angústia da doença e da inactividade? Quem não procura esquecer o período de incerteza e insegurança que viveu?
Os próprios políticos sentem necessidade de serenidade e de algum repouso. Mas sabem que, se o mais difícil já passou, o mais complexo começa agora. Quase exactamente a meio do caminho do calendário, começou a contagem decrescente para o fim da legislatura. E há sinais inquietantes. Os dois próximos orçamentos vão fazer tremer o edifício. A serenidade tranquilizadora das relações entre Presidente e Governo esmoreceu e dá lugar a uma acidez que se adivinha e prevê má conselheira. E as relações entre os partidos e dentro de cada um estão à beira de se deteriorar: todos sabem que vamos assistir a uma enorme redistribuição de cartas e poderes. E sobretudo de votos.
Os próximos dois anos não serão de transição, serão de decisão. Vão construir-se os alicerces da nossa vida em comum por alguns anos. E vai agora escolher-se entre modos e modelos, entre princípios e objectivos, decisão essa que se tem vindo a adiar graças ao pragmatismo de uns, ao oportunismo de outros e às dificuldades da pandemia. Mas há agora, como se dizia nos anos setenta, opções inadiáveis. As prioridades parecem indiscutíveis. A do desenvolvimento económico, incluindo a necessária retoma e o crescimento. A do combate às desigualdades sociais, mais uma vez visíveis e pungentes, entre as mais indestrutíveis da Europa. E finalmente a da reforma do Estado e da Administração Pública, designadamente da Justiça, a mais crónica das deficiências nacionais.
Com estas prioridades, necessário será tratar dos meios, dos recursos e das políticas. O actual pragmatismo não chegará. Há crise no debate político. As franjas marginais do panorama político agitam-se e ameaçam. A confiança na democracia aparece abalada frequentemente. Há ruptura entre público e privado. Há tensão entre capital e trabalho. Há falta de investimento privado nacional e internacional. Há crise muito séria na defesa nacional e nas relações entre poder político e Forças Armadas. A economia, com ou sem pandemia, tem-se revelado frágil e pobre. A emigração de portugueses continua a exibir valores muito elevados, próprios de uma crise permanente de recursos e de produção. As políticas públicas para a economia continuam a privilegiar o subsídio e a distribuição, assim castigando a produção e o investimento.
A primeira opção é a que diz respeito ao poder político e à aliança necessária. É praticamente certo que competirá aos socialistas dirigir o Estado durante os próximos anos. Poderão fazê-lo sozinhos ou acompanhados. Em qualquer das hipóteses, terão de desenhar os contornos e as fronteiras da aliança política com que querem trabalhar na próxima década. A aliança central está morta. Por muitas décadas, pensa-se, se tudo ficar como até agora. A aliança de esquerda, temporária e oportunista, está viva, mas tem pouco futuro, a não ser que o PS se desloque definitivamente. Se os socialistas quiserem continuar a agir empiricamente, dia a dia, sem futuro, não estarão à altura dos problemas que têm diante de si. Que todos temos diante de nós.
A segunda opção é a de esclarecer as relações entre o público e o privado, entre o Estado e a sociedade civil, entre o orçamento de Estado e o mercado, entre o subsídio oficial e o investimento produtivo. É neste domínio que residem alguns dos principais obstáculos ao desenvolvimento. A esquerda é povoada pelos que querem destruir a iniciativa privada e pelos que a querem dominar. Poucos aceitam o mercado, a empresa e o investimento privado. Muitos socialistas continuam a pensar como os jacobinos e os bolchevistas: o seu futuro e a sua duração à frente da política dependeriam da sua capacidade de destruir ou dominar o privado. Alguns começam a perceber que a sua longevidade política depende, bem pelo contrário, da sua capacidade para permitir e encorajar a economia privada.
A economia e a sociedade portuguesas têm de gradualmente estar condicionadas pela criação de riqueza, pelo investimento, pela produção e pelo crescimento. E não sobretudo pelo gasto, pelo subsídio e pela distribuição. A aplicação do plano e dos fundos europeus, durante os próximos anos, poderá ser simplesmente mais do mesmo, mais cheques assinados pelo governo, mais distribuição de simpatia, mais capitalismo de proximidade e mais iniciativa de favor. Se assim for, não pode negar-se que, com tão elevados montantes, haverá festa e animação, mas será de pouca dura. O investimento público deve ficar reservado para as suas áreas de evidente interesse e preferência, a saúde e a educação, mas a economia e a empresa devem ficar para quem sabe e pode.
Os socialistas têm uma excepcional responsabilidade histórica. Pela segunda vez na sua vida, têm a possibilidade de orientar uma política nacional que resista ao despotismo tradicional da esquerda, que saiba tratar com a direita democrática, que consiga guiar a sua acção pela liberdade, que nunca perca a desigualdade social como seu primeiro inimigo. Todavia, ter a responsabilidade e a possibilidade não significa ter a vontade.
Público, 18.9.2021
1 comentário:
Li-o com atenção, mas devo dizer que fico sempre confuso quando, apesar da reiterada demonstração de ausência quase total de princípios - da mais diversa ordem - que transparece da governação, ainda alguém consiga formular, sequer, a hipótese de que alguma vez eles irão subjazer à mera prossecução dos fins a qualquer preço.
As opções inadiáveis são as de sempre, e já alguns frutos acabaram por dar certas tentativas de bem decidir; mas isso foi no tempo anterior ao PSPS *), em que existia na política quem norteasse a atuação por princípios - apesar de, como é natural, tal opção redundar, por vezes, em menor eficácia na governação, sobretudo nos tempos mais crispados e indefinidos dos anos setenta e oitenta do século passado.
Tal como deve ter-se sempre presente a distinção entre educação e o mero ensino, convirá estabelecê-la entre a governação e a mera direção subordinada a mais altos ditames - designadamente, os daqueles de quem se depende para constituir maiorias -, já que é esta que caracteriza, desde o fim do PSPS, a ação dos que se dizem governantes.
Devo, assim, discordar da ideia da 'excepcional responsabilidade histórica' dos socialistas: existiria, sim, se no atual Partido Socialista maioritariamente militassem, nos nossos dias - que, sim, também são nossos, e não só de quem emerge agora para a vida - pessoas dignas dessa designação, pessoas com personalidade, com capacidade de acreditar além do que é visível, do que é fácil, do que, como a 'bazooka', lhes é generosamente e por iniciativa alheia deixado ao alcance da mão.
Ao que tudo indica, se atentarmos no mote socialista da campanha eleitoral para as autarquias, tudo irá passar-se da maneira habitual, sem valores, sem brio, sem dignidade, sem beleza: parece ser o único 'princípio' a existência de um enorme bolo para o qual os governantes atraem, em cada discurso, as moscas da política que, por sua vez, com a promessa de uma larga fatia, procuram granjear os votos das larvas seduzidas pela mediática encenação.
Há coisas que estão muito cá dentro deste retângulo à beira-mar, coisas que se nos colam à pele (https://mosaicosemportugues.blogspot.com/2021/07/coisas-que-se-nos-colam-pele.html), das quais jamais a população intrinsecamente 'tuga' jamais conseguirá - ou quererá - livrar-se.
Aquelas gentes povoam e dominam toda a máquina partidária, perderam - se a tiveram - toda a vergonha da aparecer como protagonistas de nova e insidiosa tirania, desprezam os que não pensam como eles, mesmo que apenas publicamente o façam para 'ficar bem' na fotografia junto dos essenciais parceiros que lhes permitem assegurar a maioria, enquanto mantém uma mole desanimada e absentista num entrópico marasmo, numa aparentemente irreversível catalepsia.
Teremos, num tal quadro, espaço para acreditar ainda que a responsabilidade histórica de quem há muito já não milita nas mesmas hostes e a memória dos seus feitos passados acabarão por conduzir à decisão certa ao ter de optar entre princípios que mal se conhece e objetivos a que se vai dando nova e mais distorcida forma a cada dia?
*) PSPS definido em https://mosaicosemportugues.blogspot.com/2021/09/antonio-de-sousa-franco.html
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