Tudo somado e repensado, a vitória dos socialistas é previsível. Perderão algumas câmaras, não se sabe se ganham outras. No cômputo geral, o partido vai poder dizer que foi uma grande vitória obtida em condições difíceis de pandemia, de crise económica mundial, de inquietação generalizada, de alarme perante as alterações climáticas e de enorme ansiedade decorrente da derrota ocidental no Afeganistão. Na verdade, ninguém, entre forças políticas, estará à altura de mostrar as deficiências dos socialistas, nem de com eles rivalizar.
Os socialistas exercem uma rara preponderância na administração económica e social, no seio das actividades culturais, na comunicação social e no universo das relações públicas e de imprensa. A ajuda da esquerda mais radical, nos sindicatos e na imprensa, tem-se revelado indispensável para a paz social que parece reinar. Na educação, apesar da mediocridade de resultados, o império das esquerdas entre docentes tem contribuído de modo indelével para o ambiente cordial que se vive.
As medonhas responsabilidades dos socialistas aparecem estranhamente diluídas na pandemia. Mas sabemos que os socialistas têm uma pesada quota parte no adiamento de soluções, na degradação de problemas e na manutenção de questões como as do BES, do Banco Novo, do BCP, da TAP, do Aeroporto do Montijo barra Alcochete barra OTA barra incerteza, da CP, da EDP, das barragens hidroeléctricas, das Parcerias Público Privadas, da PT e do julgamento dos casos de corrupção e branqueamento. Mau grado persistir em acusar os governos anteriores, o PS sabe que já é autor ou co-autor de todos estes problemas.
As enormes dificuldades económicas e financeiras, incluindo as que decorrem da pandemia e da respectiva recessão, são vistas como inevitáveis e parece poder pensar-se que se os socialistas não fizeram mais e melhor foi porque realmente não puderam. Apesar da partilha, da co-autoria e da cumplicidade absoluta dos actuais dirigentes com os dos tempos de Sócrates, os socialistas gozam de uma espécie de áurea divina e de impunidade que constituem êxito inédito na história política recente do país.
O verdadeiro génio de António Costa é o da gestão política. Deve-se-lhe o ascendente sobre a imprensa e a comunicação. Assim como a absolvição dos socialistas no fiasco na luta contra a corrupção e o nepotismo. Com estes trunfos e com um domínio incontestável do seu partido, António Costa é o principal responsável pela estabilidade política. É sabido que esta é também uma virtude. Não vale todas as virtudes, mas é em si um trunfo de indiscutível valia. E substitui-se a um pensamento para o país.
O congresso do PS deste fim-de-semana situa-se entre a entronização, a epifania e a acção de graças. Vai confirmar um vencedor. Adiar as lutas internas por mais uns anos. Preparar o partido para a vitória das próximas legislativas. Aprovar a verdadeira política de armadilha e chantagem que tanto fez sofrer os seus aliados de esquerda. E abençoar a estratégia vencedora que é a da ausência de estratégia nacional.
O Partido Socialista tem conseguido perpetuar e manter a política de terra queimada. À sua volta, nada existe. Ou pouco. Ou dependentes. Ou queixumes dos que se deixaram enganar e atrair. Esta paz podre agrada aos socialistas que a preferem a ter de se distinguir entre gigantes.
Muitos dos clichés usados para denegrir o Partido Socialista são verdadeiros. Não tem alma, nem ideologia. Não tem doutrina, nem cultura. Não tem estratégia, nem programa. Não tem afecto, nem simpatia. Não tem substância cultural, nem identidade política. Não tem orgulho, nem compaixão. Estes chavões são todos verdadeiros. Mas, no PS, não são defeitos. São virtudes. Provavelmente.
Hoje, o PS vai a congresso, amanhã a eleições autárquicas, depois à governação e a seguir, quem sabe, a nova vitória eleitoral e a novo mandato de governo. Não vê rivais consistentes. Tem as melhores sondagens possíveis. Vê, diante de si, largas avenidas de novos êxitos políticos. Pode facilmente imaginar recordes de tempo de governação, de mandatos camarários, de atracção de simpatizantes e de alas de vénias agradecidas. É difícil, quase impossível, imaginar quem o bata. Com uma incalculável massa de dependentes e com os maiores cofres do financiamento europeu, o PS prepara-se para mais uma temporada na via imperial do sucesso. A ausência de adversários à altura é aflitiva, não por sancionar quem merece, mas porque provoca um estado de letargia incurável. De que sofre todo o país.
Até agora, o Partido Socialista do século XXI não ficará na história por um legado importante de reformas políticas e sociais, nem por um extraordinário impulso na educação, muito menos por um desenvolvimento da cultura e do património, nem por uma acção determinada de combate à desigualdade social. Também não será recordado pela luta contra a corrupção, pela diligência na justiça económica, nem pela melhoria da acção de investigação, prevenção e julgamento dos crimes ditos de colarinho branco e de apropriação ou dilapidação de bens públicos.
O Partido Socialista do século XXI merece os louros do melhor gestor da política, de superior atracção de simpatias, do mais eficaz distribuidor de funções, cargos e mandatos, do mais persuasivo apaziguador de reivindicações, do mais seguro criador de expectativas entre os seus aliados e do mais rápido desarme dos seus rivais.
Sem maioria eleitoral, sem programa convincente, sem estratégia conhecida, sem resultados económicos consolidados, sem melhoramento social notório e sem legado cultural de qualquer espécie, o PS vai ganhar as próximas eleições e durar os próximos anos. Provavelmente.
Público, 28.8.2021
1 comentário:
... «E substitui-se a um pensamento para o país.»
Nada de mais dramático pode ser dito!
Enviar um comentário