Toda a gente sabia que a utilização da água dos perímetros de rega, tanto em Odemira como em muitas mais localidades, não estava de acordo com as boas regras técnicas, qualquer que seja o ponto de vista: da quantidade de água utilizada, das respectivas condições sanitárias, dos produtos a que essas águas se destinam e dos horários e calendários de acesso.
Toda a gente sabia que havia culturas forçadas a mais, estufas mal concebidas e mal construídas, uso abusivo de culturas hiper-intensivas ou ultra-intensivas. Sabia-se que havia produção excessiva de hortofrutícolas graças ao uso desmedido de factores de produção e com abuso de mão-de-obra precária, muito barata e muito mal paga.
Sabe-se que em certas operações do montado, na criação de gado, nas vindimas e em outros cultivos intensivos, como olivais e estufas chegadas aos regadios, especialmente na área de influência de Alqueva, mas também nos perímetros do Baixo Alentejo e do Ribatejo, o uso e o abuso dos factores de produção, das condições climáticas e da força de trabalho imigrante e desprotegida são quase a regra…
Toda a gente sabia que há, no Alentejo, mas também no Ribatejo, no Algarve e mesmo em partes das Beiras, agricultores e proprietários sem escrúpulos nem remorsos que aproveitam deste sistema sem lei.
Toda a gente sabe que muitos proprietários deste género de empresas e de negócio entendem que devem ser os governos e as autarquias a pagar e manter os alojamentos de que eles se servem para depositar e amontoar os seus estrangeiros em péssimas condições de salubridade e conforto.
Toda a gente sabia que os estrangeiros, marroquinos, árabes, sudaneses, nepaleses, tailandeses, romenos, indianos e outros vinham para aqui trabalhar por qualquer preço, em quaisquer circunstâncias, directamente ou através de terceiros países (como a Espanha), de avião, de comboio, de carro, de camião TIR ou de barco.
Toda a gente sabia que havia redes de negreiros e de traficantes de gente que trazem trabalhadores de qualquer parte do mundo por preços colossais na passagem, mas irrisórios no vencimento, ficam-lhes com os passaportes, trabalham sem contrato, sem cláusulas de regresso, sem bilhetes de avião garantidos e só lhes pagam, quando pagam, muito mais tarde ou nos países de origem.
Toda a gente sabe que se negoceiam, há anos, documentos oficiais, passaportes, autorizações de trabalho e residência, atestados médicos, contratos, licenças de construção de alojamentos e de estufas.
Todos sabiam que alguns trabalhadores, sobretudo mulheres, mas também homens, deviam prestar outros serviços íntimos fora das horas de trabalho agrícola.
Toda agente sabia que havia dezenas ou centenas de casas onde, em cada quarto previsto para dois beliches ou quatro camas, dormiam dez ou vinte pessoas, sendo que muitos destes alojamentos eram subalugados pelos angariadores e negreiros.
Toda a gente sabia que em muitos casos, certamente a maioria de alojamentos sazonais deste género, não havia água corrente potável, nem água quente, nem duche, nem banho, nem esgotos.
Toda a gente sabe que as Câmaras estão ao corrente destas situações, defendem a prosperidade económica da região e do município, sabem perfeitamente em que condições vivem aquelas pessoas, mas têm de manter a vida e os negócios.
Toda a gente ficou a saber que as autoridades locais regionais e nacionais, juntas de freguesias e câmaras municipais, polícias, serviços de segurança social e de inspecção sanitária, inspecção de trabalho, a autoridade tributária, os observatórios de tudo que por aí proliferam, os serviços de ambiente e de protecção da natureza, assim como os de protecção civil, todos estão há muito tempo ao corrente das situações, todos sinalizaram pessoas e empresas, todos abriram processos e todos iniciaram inquéritos.
Toda a gente sabe que Odemira está longe de ser o único sítio, talvez até nem o pior, mas a pandemia desorganizou tudo. Os ministérios da Agricultura, do Trabalho, da Administração Interna, da Saúde e da Economia, o SEF, a PJ, a GNR e a PSP estão perfeitamente ao corrente do que se passa, há anos, nas zonas produtoras destes cobiçados géneros no comércio externo.
O Ministério da Agricultura e seus serviços conhecem bem o que aconteceu em Odemira e o que está a acontecer em dezenas ou centenas de locais do país onde se vive de culturas forçadas regadas, em regime de exploração intensiva, para fornecer angariadores e intermediários que recolhem e transportam rapidamente para os centros de exportação que levam aos mercados de primores europeus…
Há anos que a PJ, o SEF, a PSP e a GNR conhecem as situações, abriram múltiplos processos, sinalizaram muitas pessoas, muitas situações e muitas instalações, nesta e noutras regiões. São simplesmente casos de evidente desastre ecológico, de atentado humanitário e de obscena exploração.
Há todavia algo que parece desconhecido para as autoridades, os autarcas e os serviços: o que pensam e sentem as populações locais? Que efeitos têm, para as suas vidas, estas situações? Que consequências têm estes factos na saúde dos locais, na educação, na qualidade do ambiente, na vida económica, no comércio e na vida social?
Toda a gente, ministros, directores gerais e directores de serviços públicos, polícias, autarcas, deputados, proprietários, produtores e comerciantes garantiram publicamente que conheciam a situação, que tinham a consciência tranquila, que cumpriam os seus deveres e que esperavam que os outros cumprissem também os seus… Um mundo perfeito!
Público, 8.5.2021
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