Definir-se como anti-qualquer coisa é sempre uma redução do espírito e uma armadilha de pensamento. E não é o que falta no nosso universo, do famoso e bíblico Anti-cristo, até às suas múltiplas versões contemporâneas. Anticapitalista, antifascista, anticomunista, anti-semita, anti-sionista, anti-americano, anti-europeu, anti-racista, anticlerical, antidemocrático, anticolonialista, anti-imperialista, anti-maçónico, antiliberal… Eis apenas alguns exemplos de designações da moda que têm o condão de despertar amigos com efeitos imediatos e instintivos.
Hoje, têm especial fortuna alguns epítetos que são verdadeiros códigos de acesso. Quando se diz anti-racista ou antifascista, os sentimentos fervem. Os dos seus defensores e useiros, assim como de terceiros que têm receio de ser visados ou apanhados nas respectivas teias persecutórias. A exemplo, aliás, do que acontecia ainda há bem pouco tempo com o famigerado anti-comunista, hoje quase em desuso.
Os movimentos anti-qualquer coisa desenham os seus inimigos, bastam-se a si próprios e designam os que se devem abater. Dispensam em geral o pensamento e a reflexão, destinam-se a provocar reflexos condicionados, tropismos tribais e movimentos gregários espontâneos. Detectam os inimigos conforme as conveniências. Não têm doutrina. Ou antes, se têm doutrina, escondem-na.
Tempos houve em que quem se atrevia a defender ideia contrária aos regimes autoritários era simplesmente tratado de comunista. Foi muito frequente em Portugal. Quem não era a favor de Salazar… era comunista! A acusação de anticomunismo era a defesa de todos os que assim se sentiam acusados. Havia mesmo uma variante sofisticada que era a do anticomunismo primário.
Outras designações surgiram, mas de família diferente: anti-capitalista ou anticolonialista tinham já coroas de glória e de afirmação. Acima de tudo, antifascista era a maior virtude. Cultivada sobretudo por comunistas e seus amigos, servia a designação para juntar oposições e congregar esforços sem ter de fazer o esforço de apurar doutrinas. Dizia-se o que não se queria, o fascismo, por exemplo, sem ser obrigado a afirmar o que se queria, o comunismo, em geral. Durante umas décadas, anticolonialista teve o mesmo destino: o de uma indiscutível virtude.
Curiosamente, o sentido destas designações simplórias é, mesmo quando de orientação diferente, de igual ou semelhante rigor. Quem se afirma anti-capitalista, anti-racista e anti-imperialista, trata os adversários de capitalistas, racistas e imperialistas com toda a desfaçatez. São os mesmos que acusam sempre os seus adversários de anti-democráticos, anti-socialistas e anti-comunistas. Como se pode ver, a riqueza destes debates e destas querelas é nula. O conteúdo doutrinário é inexistente e a complexidade cultural uma ficção. São gazuas, palavras-chave, que permitem a todos os intolerantes reconhecerem-se e identificarem os das mesmas plumagens.
Vem isto a propósito de alguns espectros que ameaçam as nossas democracias e o clima de tolerância que tão dificilmente se vem estabelecendo. São os espectros dos principais afrontamentos políticos, culturais e semânticos da vida moderna. O fascismo e seu anti-fascismo. O comunismo e seu anti-comunismo. E o racismo e seu anti-racismo.
O fascismo é odioso. O teórico, o prático e o histórico. É tolerante com a supremacia nacional. Aprecia a autoridade acima de outros valores. Alimenta o nacionalismo de modo acrítico e exacerbado. Cultiva o herói nacional, ao mesmo tempo que diminui o indivíduo. Apesar da ambição popular, não aprecia a liberdade, muito menos a democracia liberal. Mas o anti-fascismo é detestável. É um pretexto para definir aliados, obrigar a comportamentos, regimentar opiniões, criar fantasmas e fantasias que amedrontem. Juntar os antifascistas significa simplesmente submetê-los, disfarçadamente, a uma política escondida, geralmente autoritária e colectivista.
O comunismo é odioso. Por isso foi quase extinto nos finais do século XX. Autoritário sem complexos nem disfarces, advoga a supremacia de uma classe, exercida pelo comando de um só partido político, através do todo-poderoso Estado. Pugna pela abolição de todas as liberdades e condiciona os direitos individuais. Estabelece a submissão do direito ao partido. Acontece que o anticomunismo é detestável. É geralmente um pretexto para as autoridades de várias espécies. Vive do preconceito e da denúncia fácil e não comprovada. É a invenção de um fantasma para criar medo e impor restrições às liberdades. É um reflexo condicionado.
O racismo é odioso. É o reino do preconceito, estabelecendo bases para a superioridade de um grupo humano. Vive facilmente com a supremacia racial ou a escravidão. Revela puro menosprezo pela vida humana de outros povos e de outras etnias. Admite facilmente que as pessoas possam ser mercadoria e propriedade de outrem. Alimenta o desprezo por quem é de outra cor ou etnia. Mas o antiracismo é detestável. É um pretexto para explorar fantasmas. Uma tentativa para condicionar os comportamentos de outros. Quem não partilhar certas ideias políticas é rapidamente apodado de racista. A sociedade é definida globalmente como racista. O país é considerado racista no seu todo como sistémico e estrutural. Até nas universidades o anti-racismo se transformou em disciplina e em área de estudos e investigação.
Assim é que o anticomunismo se alimenta dos mesmos defeitos do seu inimigo, a autoridade e a ditadura. O antifascismo é um fascismo robusto. E o antiracismo é hoje uma das mais ferozes variantes de racismo. Pontos comuns aos três “ismos” e aos três “anti”: a autoridade agressiva, a provocação violenta, o preconceito e a submissão do Estado de direito. Assim como o condicionamento da liberdade individual e da democracia.
Não há racismos bons. Nem antiracismos. Não há comunismos toleráveis. Nem anticomunismos. Não há fascismos aceitáveis. Nem antifascismos.
Verdade é que comunismo não se vence com o anticomunismo, da mesma espécie. Como é certo que o fascismo não se derrota com o antifascismo, uma sua variante. E o racismo não se resolve com o antiracismo, forma perversa de racismo. Para qualquer destes venenos, para qualquer destes espectros, a democracia e a liberdade são as melhores armas.
Público, 22.5.2021
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