Talvez seja coincidência, mas não parece! Um dia, por causa de um livro, seis dúzias de académicos empenhados subscrevem um manifesto no qual protestam contra a academia que protege a direita, dizem eles, que branqueia a extrema-direita, garantem, que ajuda o racismo, afirmam. Em poucas palavras, contra uma academia que não denuncia o discurso de ódio, resumem. No dia seguinte, são desvendados rumores de planos que o governo faz para encomendar às universidades que vigiem o discurso do ódio, que supervisionem as redes sociais e que acompanhem as narrativas públicas sobre estrangeiros. Nada, lei ou palavra de ministro, é seguro. Por enquanto, “diz-se”, “vai pensar-se”… Mas o caminho está desbravado.
Na verdade, o que se anuncia é um dos mais violentos atentados contra a liberdade de expressão que Portugal conhece há décadas! Como quase sempre, sob a aparência de causas nobres (contra o racismo) e de sentimentos elevados (contra o ódio), o que na verdade se propõe é o estabelecimento de um cânone de virtudes e de um catecismo de valores. Os governantes e os cientistas sociais que assim se exprimem pretendem a “monitorização” dos discursos, actividade aparentemente inócua. O que na verdade querem é o estabelecimento de uma ordem. Para que serve “monitorizar”? Não tenhamos dúvidas: é um eufemismo para vigiar, policiar, registar e fiscalizar. É o que fazem as polícias, a PIDE, a KGB, a STASI e outras, vivas ou defuntas. É o que sempre fizeram as censuras. De repente, estas pessoas encontram o pretexto ideal: um partido fascista e um deputado xenófobo! Contra esse mal, desembainham espadas e alinham artilharia. Revelam-se os censores que são.
Os signatários do manifesto não escondem ao que vêm: impedir a universidade livre e plural, a fim de defender uma academia empenhada e vigilante! Os manifestantes não discutem o livro, não contestam as conclusões. Talvez nem sequer o tenham lido! Limitam-se a denunciar o autor, a sugerir a proibição, a recomendar o saneamento e a definir fronteiras para o pensamento admissível!
É pena ver entre aqueles signatários pessoas que não julgávamos capazes disto. Engano nosso! É uma desilusão contar entre os manifestantes pessoas que em tempos deram o seu nome a combates pela liberdade de expressão. Erro nosso! Eles lutavam pela sua liberdade, não pela de todos.
Depois do manifesto inquisitório, os pezinhos de lã do governo disfarçam as botifarras da censura. Parece que o governo vai abrir democrático concurso para aprovar cinco projectos de monitorização das expressões e das narrativas! Sempre com motivos nobres, claro: denunciar o ódio e observar o racismo!
É bem possível que estes planos alucinados não sejam mais do que isso, planos alucinados! Mas é melhor estarmos prevenidos. Há coisas que se fazem, rumores que se deixam correr e vagas intenções que chegam ao público com a missão de sondar os espíritos. Logo se verá depois se as coisas correm bem ou mal.
O mais provável é que estejamos diante da ambição de experimentar práticas de controlo da expressão, de censura e de intoxicação. Os pretextos, o racismo e a xenofobia, são tão consensuais que podem ser aproveitados para a criação de uma censura política e moral, que acabará por ser muito mais vasta do que aquelas perversões do espírito. Outras formas de expressão virão a seguir.
Tudo o que se descreve acima é selectivo. Evidentemente. O racismo, a xenofobia e a desigualdade são consideradas nefastas ou toleradas, conforme as conveniências políticas. A retórica da violência também: se destinada a inimigos de classe é aceitável; se dirigida a forças reaccionárias é valorizada; se endereçada a certas etnias é justa luta, mas se forem outras, será considerada incitação ao ódio…
Entre governantes, grupos fanáticos e académicos apostados em destruir a universidade e substitui-la por fuzileiros do pensamento, está a criar-se um clima que faz lembrar a Censura salazarista, o Macarthismo, o Jdanovismo soviético… Com algumas diferenças. Antes, eram as polícias e os tribunais. Hoje, são agências de comunicação e universidades que se prestem a tal serviço.
É seguramente a tentativa de atentado à liberdade de expressão mais detestável da democracia portuguesa, só comparável às leis salazaristas, fascistas e comunistas. O governo prepara. O Parlamento espera. Há Universidades que se prestam e faculdades, institutos e centros de estudos que se perfilam para cuidar da virtude publica…
Mal vai um país quando se começa a olhar, não para o que as pessoas fazem, mas sim para o que pensam, sentem e dizem! Muito mal vai um povo quando as autoridades pretendem estabelecer códigos morais, linhas divisórias de atitude e barreiras para os sentimentos! É tudo por boas causas: os governantes e as universidades empenhadas só pretendem que não haja racismo, só se esforçam por que não haja ódio, só pretendem que as pessoas sejam boas! Sabemos que as autoridades e os académicos empenhados só querem o nosso bem! Mas esse é mesmo o ponto: quem é livre não quer que as autoridades se ocupem do seu bem! Nem que seja para “monitorizar”. Sabemos que quando as autoridades se ocupam do nosso bem dá asneira.
É realmente inquietante ver que há universidades que se prestam, académicos que se candidatam, governantes que se preparam e intelectuais que não se importam. E um partido cujo comportamento se estranha. Onde está o Partido Socialista para quem o golpe do jornal República foi o sinal de alarme para a campanha da liberdade de 1975? Que é feito dos socialistas que não se deixavam enredar nas teias que põem em causa a liberdade de expressão? Que aconteceu ao PS de Mário Soares cujo primeiro livro tinha como título “Portugal amordaçado”? Donde vieram os socialistas que fecham os olhos e tapam os ouvidos diante desta ofensiva contra a liberdade que se propõe monitorizar o discurso e a narrativa? Como é possível que as últimas gerações de socialistas não resistam a tentar comprar ou calar jornais e jornalistas, redes sociais e televisões? E como se pode imaginar que haja universitários prontos para se transformarem em sacerdotes da monitorização e sargentos do Grande Irmão?
Estes senhores não querem apenas combater o que entendem ser o fascismo, o racismo ou o populismo. Querem também destruir a democracia plural, a liberdade de expressão e o livre pensamento. São mesmo perigosos, não é só conversa!
Público, 19.7.2020
2 comentários:
Estavam confortáveis com um corretês que tinha plena expressão parlamentar e escassos desvios na comunicação.
Quebradas essas barreiras ficam nervosos, dão sinais de inquietude crescente e preparam-se para lutar com os meios de que julgam dispor plena e definitivamente - os poderes do Estado.
Muito bom!
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