Classicamente, a ideia era “cherchez la femme”. Hoje, já não é assim. Mesmo nos casos em que se sabe que “la femme” anda por ali, essa não é a questão. O verdadeiro problema é “onde está o dinheiro?”. Assim mesmo. Dito à bruta. Como nos barbeiros, nas redes sociais e nos táxis. “Onde está o nosso dinheirinho”? Em geral, não há resposta. Quem a poderia dar, empresários, governantes e jornalistas, não querem saber, escondem, têm medo de perguntar, receiam desvendar… E os contribuintes são inundados de expressões malditas: vamos investigar “até às últimas consequências”, “doa a quem doer”. Depois, segue-se o silêncio. Ou a confusão criada pelos novos enigmas dos “activos”, das “mais valias” e das “perdas de valor”. Assim se criou um dos mais opacos universos que se imagina.
Verdade é que não percebemos o que se passa. Há poucas pessoas que nos expliquem com honestidade e clareza. Não há muitos jornalistas que perguntem nem investigadores capazes de esclarecer os “problemas sistémicos” e o “enquadramento”. O universo político financeiro é o mais espesso e o mais censurado que se conhece.
Ainda por cima, quem se envolve nestas questões tem marca. Envolvimento de interesses. Simpatia partidária. Dependência económica e publicitária. Hipoteca ideológica. Se, em muitas matérias de interesse colectivo, é possível encontrar quem preste o serviço de explicar, nestes assuntos financeiros, com ramificações políticas, pessoas nessas condições são quase inexistentes. Quem se aventura a explicar bem, entre outros, o BES, o BPN, a PT, a EDP, a TAP, o BANIF, a REN e o MONTEPIO, assim como as PPP, sabe que, algures, podem ser pesadas as represálias no emprego, na publicidade e na informação.
Vivemos em sociedade muito divida, mais do que parece à primeira vista. As ideias do “caldeirão central” e do “consenso” são geralmente falsas. Quem tem opinião sobre os bancos e as empresas, sobre os negócios dos privados e do Estado, tem uma visão previsível. E os partidos não ajudam muito. À direita, gostam de justicialismo, mas sentem que têm telhados de vidro. À esquerda, está-se sempre pronto a condenar os privados, a fim de desculpar os políticos. À direita, a regra que tudo define é a empresa privada, à esquerda é a nacionalização e o Estado. Qualquer plano de esquerda começa e acaba sempre com a nacionalização. Nos caos mais duros, próprios ao BE e ao PCP, a inspiração é mais radical: liquidar a empresa privada. Em contraste, qualquer plano de direita para a economia e os serviços vive da empresa privada, com recurso ao Estado para os prejuízos, as contingências e os imponderáveis.
Quem ganhou e quem perdeu com a gestão pública da TAP, seguida da privatização manhosa, corrigida de modo a que não ficasse só pública, nem só privada? Quem ganhou com as centenas de milhões que circularam em poucos anos com estas operações?
Quem ganhou e quem perdeu com a gestão do BPN? Por que se decidiu que a sua falência teria problemas sistémicos? Qual foi a vantagem da nacionalização se o banco acabou no que acabou, com milhares de milhões a pagar pelos contribuintes? Como se perdeu valor com o BPN? Quem roubou no BPN? Onde está o dinheiro? Sumiu?
Quem ganhou e quem perdeu com o BES, com este que parece ser o maior golpe sórdido da história da economia e das finanças portuguesas, onde está o valor destruído, o valor perdido, o valor desviado e o valor açambarcado? Desapareceu?
Quem ganhou e quem perdeu com a destruição da PT, uma das melhores empresas portuguesas, mais enérgica, com mais capacidade de inovação e projecção externa? É verdade que muito cedo se verificou uma tendência para empregar consultores familiares de políticos, parentes de empresários e associados a banqueiros, o que não ajuda muito ao escrutínio… Mas era, apesar de tudo, uma das raras realizações empresariais portuguesas dignas de nota e mérito. Era…
Quem ganhou e quem perdeu com a transformação da EDP naquela que será talvez a maior e mais poderosa empresa portuguesa, agora chinesa, recheada de rendas de Estado, amiga de políticos, empregadora de celebridades de esquerda e de direita, com uma especial experiência no mercado de influências?
Como é possível que as histórias destas empresas sejam contadas com ardil: por gente de esquerda que detesta a propriedade privada e geme de amor pela gestão pública; ou por gente de direita que procura desculpas para qualquer gesto de protecção do lucro privado a que preço for. Como é possível que seja tão difícil encontrar quem, com espírito independente e sem preconceito comunista ou capitalista, se dedique a estudar e a contar estas histórias?
Alguns dos poucos livros interessantes sobre os “negócios” da nacionalização e da reprivatização são escritos por militantes de esquerda que odeiam a iniciativa privada e o mercado. Os poucos livros interessantes sobre estes negócios escritos por autores que aceitam a propriedade privada têm o triste condão de serem herméticos, tecnocratas e esconderem parte da verdade, justamente a mais sumarenta.
Portugal perdeu décadas com a ditadura. Com a guerra colonial, perdeu quinze anos e quase uma dezena de milhares de vidas. Com as nacionalizações, Portugal perdeu tempo e riqueza. Com as privatizações e as reprivatizações, Portugal perdeu mais tempo e valor. Quanto dinheiro e quantas pessoas se perderam para prolongar a guerra em África? Quantas vidas se perderam para descolonizar da maneira que se fez? Quanto dinheiro e quanta riqueza os Portugueses perderam para nacionalizar e reprivatizar? A TAP faz parte desta história de desastres, é uma saga, um folhetim, uma telenovela…
Em quase todos os negócios importantes realizados em Portugal nas últimas décadas e envolvendo grandes projectos, fusões de empresas, nacionalizações e reprivatizações, Portugal ficou a perder alguma coisa e os Portugueses ficaram a perder muito. Conhecem-se alguns casos, muito poucos, de grandes investimentos ou transacções que resultaram e os contribuintes, os accionistas e os trabalhadores ficaram a ganhar, mas são tão poucos! Na maior parte dos casos, os contribuintes ficaram a perder.
A saga da TAP é um bom exemplo da promiscuidade de interesses, da fraqueza negocial de Portugal e da debilidade das instituições com a missão de fiscalizar e avaliar. Assim como do pensamento dogmático em vigor, à esquerda como à direita, relativamente aos grandes problemas nacionais. Haverá certamente alguém que, um dia, fará a história verdadeira da TAP, mas será seguramente tarde de mais! Até esse dia, teremos de viver com este mito e este nó cego.
Público, 5.7.2020
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