De farpelas negras, esvoaçam por esta altura. Falam, aplaudem e sorriem… São os Magistrados judiciais e do ministério público. Os membros dos Conselhos Superiores. Os advogados, sua Ordem e seu Bastonário. Os presidentes dos Supremos e outros tribunais superiores. A Procuradora geral da República. Os representantes das Relações. Os magistrados do Tribunal Constitucional, especial entre todos. Os dirigentes dos sindicatos e das associações de magistrados, estes tão estranhos corpos no meio de órgãos de soberania. É a abertura do ano judicial, cerimónia muito peculiar. Tem Presidente da República e Presidente do Parlamento. Tem Ministra da Justiça. Ao contrário de outros anos, não teve Primeiro-ministro, ausência incompreensível, pesada de significado, não se percebe bem porquê, mas deve haver caso. Tem Cardeal, Generais, comandantes das Polícias, Inspectores e Directores. É a fina-flor da Justiça, da Segurança, da paz nas ruas e da ordem no espaço público. Normalmente, a cerimónia decorre nos salões do Supremo, no Terreiro do Paço, mas este ano, por motivos de obras, foi deslocada para o Palácio da Ajuda.
Os assistentes, muitos enfarpelados também, reúnem-se com antecedência. O ambiente é solene e cerimonioso. Chega o cortejo. Começa a sessão. A liturgia da abertura do ano judicial é o local por excelência para a “culpa circular”: todos apontam para os outros e se isentam de responsabilidades. A culpa B, que denuncia C, que responsabiliza C, que acusa D… Por vezes fazem-no com elegância, outras com truculentos desabafos. Este ano, a cortesia foi a regra. Quando assim é, culpa-se o sistema, o maior responsável por tudo o que não funciona.
Todos querem reformas, reclamam melhores leis, pedem mais meios, exigem mais recursos humanos e reivindicam mais celeridade, recato, respeito e confiança. Mas, este aparente consenso não resiste à análise. Na verdade, os recursos e os meios de que cada um fala são diferentes. Mais juízes, mais procuradores, mais oficiais de justiça… Mas também vencimentos, promoções, pessoal técnico, despesas de deslocação, equipamento de informação, bases de dados e contratação de serviços especializados … E ainda subsídios de compensação, descontos para a Caixa Geral de Aposentações e isenção de IRS. Uns olham para os meios materiais, outros para os meios técnicos, outros ainda para os meios humanos. Não faltam os que querem os gabinetes de apoio aos juízes. Finalmente, muitos preferem referir-se aos meios materiais e humanos das estruturas de investigação e das polícias em especial. Não! Não há consenso. Cada um pede o que quer e lhe falta, o que é natural. A verdade é que temos ali, durante uma longa e transpirada cerimónia, a maior assembleia de reivindicações de toda a sociedade portuguesa. Só que a cortesia ritual e os bons modos fazem com que em nada se pareça com uma assembleia da CGTP, uma reunião de camionistas ou um piquete de estivadores. Não se parecem com eles, mas exigem mais do que eles.
Não há razões para não acreditarmos em pessoas tão qualificadas e responsáveis. Está ali a nata da sociedade, a elite do Estado e o que de mais prestigiado tem a Administração Pública. Quer isto dizer que não se pode sequer imaginar que um dos representantes esteja a mentir ou a enganar. Só dizem verdades. Mesmo se verdades parciais e interessadas. Mas sempre verdades. É verdade que faltam pessoas e meios. Que as leis são em geral mal feitas. Que existe interferência política onde não deve haver. Que a rivalidade entre os grandes corpos da Justiça (magistrados, procuradores, advogados, oficiais e polícias) é responsável por uma boa parte da sua má reputação. Que um número excessivo de “mega processos” atrasa a justiça, dá mau nome aos magistrados e cria má reputação. Que a produtividade dos tribunais é reduzida, mesmo se os últimos vinte anos têm mostrado uma melhoria. Que a justiça é socialmente injusta. Que os códigos processuais estão desactualizados. Que existe a “justiça dos mais fortes”, o que se revela no facto de aquela ser bondosa para os que mais são ou mais têm. Que os prazos e os processos favorecem escandalosamente o governo, os políticos e os poderosos. Que são deficientes as condições físicas de funcionamento dos tribunais e ineficientes as redes de comunicação. Que continua a vigorar o desprezo pelos mecanismos de segredo de justiça. Que há uma enorme passividade parlamentar relativamente à justiça.
Esta última deficiência é das mais gritantes e, ao mesmo tempo, das menos referidas. Na verdade, muito depende do Parlamento, a começar pelas leis e pelos códigos. O Parlamento tem vastíssimas competências, muitas delas exclusivas, desde a definição de crimes e de penas, à nomeação de magistrados para os órgãos superiores, passando pelos estatutos dos tribunais. O Parlamento esconde-se atrás da independência dos juízes e da autonomia dos tribunais, assim como da iniciativa do governo, para justificar a sua indolência e a sua passividade.
Alguns discursos, na cerimónia de abertura, sublinharam os melhoramentos do sistema de justiça. Em certos casos, têm razão. Os números de processos entrados, findos e transitados mostram uma evolução positiva. Isto é, nos tribunais comuns, parece que a tendência é de progresso: o número de resoluções é superior ao de entradas. Isto apesar de o número de magistrados judiciais estar estagnado há dez anos e o de procuradores em diminuição durante o mesmo período. Numa breve observação europeia, o número de magistrados por habitante é razoável, a meio da tabela.
O problema é evidentemente o dos crimes e processos de corrupção, de criminalidade financeira e económica ou que envolvem nomes pesados da sociedade, da economia e da política.
Como se pode ver com o estado actual do “caso de Tancos”. O Primeiro-ministro e o governo não perceberam que a sua reacção e a sua posição relativamente a este caso só os prejudicam a si próprios. O comportamento do Primeiro-ministro foi culposo e envergonhado. Mostrou desconforto e mácula, além de receio de escrutínio público.
Por sua vez, o Presidente da Assembleia da República percebeu que lhe era difícil isentar os parlamentares de culpas e sobretudo sentiu-se pouco à vontade para criticar os juízes, numa altura em que os processos que visam os políticos são mais do que muitos. Numa intervenção excêntrica e de rara imaginação, denunciou “as presunções de regeneração justicialista”, acusou “um certo clima anti-parlamentar” e defendeu a Assembleia da República que, aliás, ninguém acusou!
Público, 12.1.2020
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