Orçamento! É a discussão dos dias presentes e das próximas semanas. É natural que assim seja. Trata-se do documento mais importante que a nossa assembleia legislativa aprova anualmente. Explícitas ou implícitas, estão ali as escolhas do governo, do Parlamento, dos partidos e, em certa medida, da população. As prioridades e as estratégias estão ali desenhadas, assim como as verdadeiras opções. Mesmo se os deputados e os jornalistas vão perder muito tempo com debates inúteis. Quem tiver tempo para ler, perceberá quem fica a ganhar e a perder. Poderá detectar os castigos e os favores. Conseguirá sentir a justiça e a injustiça das políticas públicas. Tudo está ali, para o melhor e o pior. O problema é que se vê mal. E nem sempre se percebe. Com tudo cortado às fatias e às rubricas, é difícil compreender o principal.
Pena é que a intriga seja o tema essencial. Há aliança ou não? À esquerda ou à direita? Cede-se um pouco aos pobres, para agradar ao Bloco, ou aos funcionários públicos, para contentar o PCP? Vamos ter estridência bloquista quanto baste, acidez comunista com fartura. Assim como a presunção dos pequenos partidos que vão falar como se tivessem 30% dos votos! Muito vai ser dito a propósito da desinteligência entre Costa e Centeno, tema relevante, mas não decisivo.
Apesar das contas certas e do possível excedente público, a verdade é que a principal característica deste orçamento é o do aumento do Estado e do Governo. Como há muitos anos acontece. Aliás, as negociações entre partidos têm apenas esse objectivo: gastar mais! Tanto a esquerda como a direita querem gastar mais. Na educação, na saúde, na função pública, nos vencimentos, nas pensões e na justiça: aumentar a despesa e o número de funcionários é a reivindicação.
Sem que se perceba, neste orçamento continua indigitado o caminho para a regionalização. Com as invenções de Costa e Cabrita, não se chama regionalização, chamar-se-á outra coisa qualquer. Talvez descentralização. Não se criarão regiões, mas entidades. Não se farão eleições, mas serão eleitos uns representantes para fazer companhia a uns nomeados: não serão uma coisa nem outra. Tudo será feito para evitar o veto do Presidente da República e para afastar a hipótese de referendo. Mas é este o mais intenso programa com o qual o PS pretende criar um Estado à sua imagem.
Com um palavreado onírico sobre a democracia de proximidade e a sustentabilidade autárquica, o que o governo e o PS propõem é simples. Aumentar o Estado. Aumentar os orçamentos públicos. Criar novas competências para a Administração. Duplicar competências e confundir funções entre o local, o autárquico, o regional e o nacional. Aumentar a despesa. Aumentar a dependência dos concelhos, das freguesias e das comunidades locais. Aumentar a dependência da sociedade civil e dos cidadãos. Na verdade, trata-se de dar mais um passo no alargamento da Administração Pública e do Estado e no enfraquecimento da sociedade civil.
A associação entre representantes com legitimidades diferentes, nomeados pelo governo, designados pela Administração, representantes de instituições públicas e privadas e finalmente eleitos, cria uma espécie de câmara corporativa na qual os cidadãos, as instituições livres, as organizações privadas e as associações ficam tuteladas. As autarquias, a meio caminho entre o Estado e a comunidade, ficam ainda mais amarradas à Administração Pública. Este processo de reforma alarga a malha do Estado. Trata-se de uma regionalização disfarçada que traz para dentro do Estado central as regiões e os municípios. É uma democracia de proximidade que submete os cidadãos ao Estado. Não se trata obviamente de aproximar a administração dos cidadãos, mas sim de incluir os cidadãos na administração. É a isto que se chama uma Administração Pública inclusa!
A leitura combinada dos projectos de regionalização, do programa de governo e do orçamento é luminosa porque permite ver as penumbras. Aonde está a ideia de libertar os cidadãos? Nem uma referência! Aonde estão antigos desejos dos libertários, dos social-democratas e da esquerdas democráticas? Ausentes! Ideias nobres que fizeram décadas de esperança desapareceram. Não se pensa em remover obstáculos à criatividade e à iniciativa dos cidadãos. Morreram os sonhos que alimentaram muita política, quando ser de esquerda era sobretudo ser livre e permitir a liberdade. Nunca substituir a liberdade.
As esquerdas trouxeram solidariedade. Eis uma ambição que prometia grandeza. Mas depressa se transformou em medonha: dar a liberdade, a igualdade e a criatividade! Organizar, orientar, conduzir e mobilizar os cidadãos! Dar-lhes um propósito e garantir a sua absoluta igualdade!
O Governo e seus grandes, médios e pequenos funcionários procuram obsessivamente definir estratégias nacionais, elaborar planos nacionais e construir programas nacionais para organizar a vida de todos. O Governo pretende até elaborar planos para promover Portugal como destino turístico LGBTIQ! O ideal deixou de ser a liberdade, para ser a integração. Tudo é Estado, nada é civil. Tudo é Administração, nada é cidadão.
Os casos aberrantes da Educação e da Saúde são excelentes exemplos. Ambos os sectores estão em crise, sobretudo a saúde. Há cada vez mais médicos e enfermeiros, há cada vez mais professores por aluno, há cada vez menos alunos, nada disso tem importância: o que os partidos do governo e acessórios querem são mais professores, mais médicos e mais enfermeiros, quando é evidente que o essencial é um problema de organização. Portugal é um dos países da Europa com mais médicos por habitante, mas continua a procurar-se mais médicos. Se o Serviço Nacional de Saúde tem um gravíssimo problema de organização, a resposta é vociferar contra a saúde privada! Apesar de haver funcionários a mais, o atendimento dos serviços públicos na segurança social, nos papéis de identidade, no registo de estrangeiros e nas autorizações e licenças é ineficiente, moroso e desigual. Graças às delícias da Internet e da administração digital, há cidadãos pobres, nacionais ou estrangeiros, que são enviados de Lisboa para os Açores ou do Porto para Faro, “a fim de serem recebidos mais depressa”.
O Leviatã, grande monstro marinho, dragão, serpente, demónio e devorador de cidadãos é o Estado forte que se constrói diante de nós. Dia após dia.
Público, 5.1.2020
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