Já havia perigo nas costas do Mediterrâneo. Também, mais a Norte, na Germânia e, a Leste, nos Urais. No Atlântico, instalava-se uma inquietante distância: um estranho silêncio alternava com um ruído agoirento. Desta feita, nas praias dos mares do Norte, a Europa morreu de vez.
A má notícia chegou cem anos depois de ingleses e americanos terem salvado uma Europa exangue e setenta anos após uma segunda ressurreição da Europa, novamente às mãos de americanos e ingleses. À terceira, perante a indiferença dolosa da América, é a Grã-Bretanha que dá o golpe de misericórdia. A sua saída da Europa tem o sabor do absurdo e o ar da tragédia. E tudo isto aconteceu perante o ar aliviado de tantos europeus que estavam desejosos de ver os ingleses pelas costas.
Evidentemente, os principais responsáveis de todas as mortes foram sempre os Europeus. Os nacionalistas e os imperialistas. Os revolucionários e os bolchevistas. Os fascistas e os nazis. E outros. O que realmente muda é que, nas mortes anteriores, houve americanos e britânicos para salvar as pratas da casa. E as paredes. Desta vez, é pior. Os europeus destruíram. Os americanos ajudaram. Os britânicos confirmaram e vieram dizer a todos que é possível, que ainda pode ser pior.
A Europa perdeu a batalha das nações, sem criar um substituto que não seja a vacuidade do cosmopolitismo global. Perdeu as batalhas da tecnologia, da ciência e da cultura. É hoje raro, algures no mundo, reconhecer traços sólidos da cultura europeia, a não ser o património histórico dentro de portas. Até no continente europeu, marcas, símbolos e valores ascendentes são americanos, islâmicos, africanos e asiáticos. A Europa perdeu a batalha da defesa: se tiver de se defender, depende de outros, de americanos em particular. Desde que eles estejam dispostos, o que é cada vez menos verdade. Talvez a Europa seja ainda um farol na justiça, nos direitos humanos e na protecção social. Nem sempre. Mas talvez. Só que, para isso, é necessário ter riqueza, instituições, democracia, consensos, defesa e segurança. O que vai faltando… Os europeus sabem gastar e distribuir. Mas sabem cada vez menos criar, poupar, consolidar e desenvolver. Sem estes, aqueles não são possíveis.
É destes momentos que se faz também a história: parece que tudo conduz ao erro, os homens estão fechados num círculo de fogo e não sabem como sair. Em frente ao desastre, ninguém sabe ou quer evitá-lo! Perdeu a Europa, perdeu a Grã-Bretanha, talvez tenha perdido o mundo.
Faremos este luto durante muitos anos. A Europa perdeu o seu mais eficiente e bem equipado exército, as suas mais formidáveis universidades, os seus campos mais equilibrados e preservados, o seu mais criativo sistema financeiro e a sua cultura mais universal. O pior é que muitos europeus ficaram felizes com essas perdas!
Esta desastrada aventura apenas começou. De Norte e do Sul, do Oeste e do Leste, virão mais notícias, perturbação e fractura. Apesar de tudo, das derrotas, retiram-se lições. Desta, também.
Ficámos a saber que é possível sair pacifica e democraticamente da Europa. Que outros poderão seguir um dia. Que talvez seja possível consagrar o separatismo pacífico e democrático, na Escócia ou na Catalunha. Que talvez seja necessário rever a paz na Irlanda. Que teremos de estar preparados para os sinais de fogo da Itália, da Turquia, da Hungria e da Polónia. Temos de estar preparados para uma Europa inquieta, violenta ou vulnerável, como já quase ninguém a viu. Foram mais de setenta anos em que, sem dramas, os Europeus tiveram a impressão de que o futuro só continha boas notícias. Sete décadas de paz, em que os piores factos de violência, de Belfast a Bilbao, de Belgrado e Sarajevo, foram excepção e foram sendo resolvidos. Anos durante os quais a maior catástrofe ocorrida, a construção do Muro de Berlim, chegou a um termo pacífico. Longos anos durante os quais todos os vestígios de ditadura foram desaparecendo. Nunca a Europa tinha vivido tal! Em paz. Em liberdade, de Lisboa a Helsínquia e de Madrid a Bucareste.
Ficámos a saber que não há só nacionalistas de extrema-direita, reaccionários e fascistas. Também há nacionalistas de esquerda e comunistas. Também há nacionalistas democráticos, conservadores e liberais. Ficámos a saber que há socialistas, social-democratas e trabalhistas que não querem ou já não se interessam pela Europa. E que votar contra a Europa já não é o próprio dos extremos, dos fascistas e dos comunistas. Ficámos a saber que a virtude não está toda do lado da Europa, do cosmopolitismo e da globalização. Ficámos a saber que as liberdades têm uma geografia, que a democracia tanto pode existir no cosmopolitismo europeu como nos Estados nacionais e que o racismo e a xenofobia não são exclusivos da direita e das nações, também são crenças das esquerdas e das federações. Também ficámos a saber que o desejo de controlar as migrações e de orientar as políticas sociais não é próprio dos fascismos e da extrema-direita, é uma das mais legítimas aspirações de qualquer povo.
Poderia pensar-se que estas hipóteses, agora confirmadas, enriquecem o debate e abrem perspectivas de novas escolhas para a Europa! Mas não. O problema é que todas estas hipóteses e alternativas, democráticas ou não, são contra a Europa, apesar da Europa e fora da Europa!
Ganhou sentido o cartaz de uma manifestação, há alguns anos, em Madrid: “Os nossos sonhos não cabem nas vossas urnas”! Ficámos a saber que a Europa estabelecida, a Europa dos Conselhos e do Parlamento, a Europa da Comissão e das Políticas comuns, já não é capaz de perceber o que querem os povos. E temos a consciência, agora, de que, sem capacidade para se auto-regenerar, a Europa abrirá as portas aos realmente anti-europeus e anti-democráticos, de esquerda e de direita. Do Oriente e do Ocidente. Nacionalistas ou não.
Gradualmente, a Europa perde os seus traços antigos: a cultura clássica helénica, o Cristianismo, o espírito do Renascimento e o iluminismo. Em troca, vai recebendo o poderio da cultura de massas americana, o irredentismo islâmico e o multiculturalismo afro-asiático. O pior é que, com tudo o que perde, a Europa também pode perder a sua diversidade nacional, a democracia e as liberdades.
Público, 22.12.2019
1 comentário:
numa europa envelhecida naturalmente a dependencia de paises mais jovens e natural
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