É legítimo pensar que o PCP e o BE pretendem acabar com a saúde privada. Até chegar esse dia, procuram percorrer os caminhos estratégicos dos passos graduais. Primeiro proíbe-se isto, depois aquilo, até à vitória final. É o seu mais legítimo direito. Não gostam da saúde privada, não entendem que assim se possa tratar bem de doentes, acham que só o público gere e trata bem. Pensam que a saúde não é um negócio e que não se pode ganhar a vida com a saúde dos outros. Para eles, a saúde privada prejudica a saúde pública. Se o público trata mal, é por causa dos governos e do sector privado. A ideia de que a saúde privada deve ser liquidada não é original: estes partidos pensam o mesmo da educação, da segurança social, da água, da electricidade, dos caminhos-de-ferro, dos correios e de quase tudo. Não há verdadeiramente novidade.
Conforme os tempos e as conveniências, o PS acolhe todas as hipóteses para organizar a saúde, com especial afecto pelo Serviço Nacional de Saúde. As sensibilidades que existem dentro do partido dão para tudo. Há os que querem estreita colaboração entre público e privado. Os que querem separar as águas, mantendo ambos sectores activos. E os que querem deixar os privados longe, em áreas residuais ou em condomínios de ricos.
O PSD e o CDS, com diferenças de pormenor, aceitam o serviço público, uns mais por resignação, outros por suave convicção, nunca foram persuasivos nas suas declarações favoráveis ao SNS e exibem uma preferência marcada pela saúde privada.
É pena que quase ninguém defenda um sector público forte, ao lado de um sector privado consistente. Geralmente, entre nós, quem quer um forte, quer liquidar o outro. Ou espera que os outros sejam fracos.
Adiscussão sobre a lei de bases da saúde é bem vinda. Permite esclarecer opiniões. O momento, em cima de eleições, não é o melhor. Os ânimos estão acesos, o argumento eleitoralista domina. Como vivemos em tempos de adversários, esquerda contra a direita, a saúde não vai ficar a ganhar. A nova lei de bases, se houver uma e se for declarada constitucional, não vai durar muitos anos. De qualquer modo, o mais importante na saúde não é de todo a lei. É o orçamento, o investimento, a organização hospitalar e dos centros de saúde, a exclusividade dos médicos, a humanização dos cuidados e a prontidão do atendimento.
Aparentemente, o caso mais polémico é o das parcerias público privadas, de que Portugal é, previsivelmente, o campeão do mundo! PSD e CDS querem que seja possível. O PS admite, diz que não gosta muito, mas esteve em quase todas. O PCP e o BE querem proibir. É mais um debate bem português. A proibição é o essencial. Uma boa lei, em país civilizado, deixaria as hipóteses em aberto aos governos e aos partidos que, conforme os votos, fariam o que desejassem fazer.
As PPP da saúde são poucas, talvez quatro. Umas correm bem, outras mal. Não merecem este barulho todo. É certo que não deveria haver PPP em quase nada. Mas a verdade é que as PPP dos últimos trinta anos e que incluem os sectores ferroviário, rodoviário, portuário, de saúde, de segurança e outros, foram uma solução de espertinhos para adiar défices, como foram a porta de entrada para enorme quantidade de negócios ruinosos para o Estado. Este paga a mais, controla a menos, reserva para si as cláusulas de risco, remete para os privados os benefícios e assinou misteriosos contratos com cláusulas secretas. As PPP para a saúde deveriam ser revogadas, tal como, aliás, a maior parte das outras, se não mesmo todas, dado que se revelaram um péssimo negócio para o Estado e uma escola de promiscuidade para muita gente.
OSNS deve ter gestão pública, é um princípio evidente. Não faria qualquer sentido subalugar este serviço a entidades privadas cujos objecto e orientação são diferentes da lógica essencial do serviço público. Deve ter meios e exclusividade, com autonomia e responsabilidade.
A existência de instituições privadas é essencial, como exigência de liberdade e democracia; como termo de comparação entre sistemas; como fonte de desenvolvimento; e como condição para a livre escolha, mesmo sabendo que esta liberdade de escolha não beneficia toda a gente de igual modo.
Parece inquestionável que possa haver convenções leais entre organizações públicas e instituições privadas, no quadro dos subsistemas e de contratos públicos, como a ADSE, os militares e outros. As convenções contribuem para a liberdade de escolha. Esta deveria ser virtude estendida a todos os portugueses. Os sistemas de convenção deveriam ter organizações de supervisão de confiança e não incompetentes como foi o caso durante os anos de facturação exagerada, só possível com a conivência das entidades públicas pagadoras.
A dedicação exclusiva ao serviço público, por parte de médicos e enfermeiros, deveria ser a regra, com efeitos benéficos para as instituições e para os utentes, como se vê nos poucos hospitais em que tal é adoptado.
Indispensável, sem exigir qualquer nova lei, é um grande desenvolvimento do SNS, das suas capacidades técnicas, da prontidão, do conforto e da humanidade das suas unidades e dos seus profissionais! Uma revisão radical dos sistemas de filas de espera e de marcação de consultas e de cirurgias é tarefa urgente, pois vivemos num país cruel, em que os atrasos são marcas de uma enorme desigualdade social.
Há quem queira destruir as instituições privadas de saúde, como aliás querem liquidar os privados das escolas, dos seguros, dos serviços públicos e, mais tarde, da economia! É lamentável verificar isto, meio século depois de fundada a democracia. Mas a vida reserva-nos estas surpresas. Governo, socialistas, comunistas e bloquistas juntam esforços contra os médicos e os enfermeiros, contra a ADSE, contra os seguros de saúde e contra as clínicas e os hospitais privados. É evidentemente uma luta política que nem sequer se desculpa por ser ano de eleições. Foi-se longe de mais. O SNS e as instituições públicas de saúde já sofriam uma enorme pressão por falta de investimento e menor qualidade de serviços. Há miséria na saúde desde os tempos da troika, agravados agora pelo socialismo. O SNS não precisava desta crise exclusivamente política. Precisava, isso sim, de cuidado.
Público, 2.5.2019
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