Já se sabe que o Estado português não é forte, mas é gordo. Pesado. Lento. E presa fácil. Os últimos anos têm sido confirmação dessa verdade. Pode dizer-se últimos quatro anos, de socialistas e esquerdas. Últimos oito, se acrescentarmos a aliança PSD/CDS. Ou mesmo catorze, com os seis dos socialistas de Sócrates. Não vale a pena tentar culpar o “governo anterior”, como eles próprios fazem. Já se percebeu que é receita gasta. O estado a que chegámos traduz um processo de deterioração política e institucional para o qual têm contribuído governos, parlamentos e muito mais gente. Só que, se não serve dizer que “são todos culpados”, também não vale diluir as responsabilidades. Para cada caso, é sempre possível designar no espaço e situar no tempo. Sem isso, não há remédio.
Jamais saberemos se a acumulação de casos na comunicação se fica a dever a coincidências ou ao ano eleitoral. É possível que esta última seja a hipótese adequada. Mas isso faz parte da democracia. Quando há eleições, ajustam-se contas, fazem-se promessas, castiga-se e recompensa-se. E também há quem se vingue.
Bastou um homem e a sua singularidade para deixar em crise as instituições nacionais, os órgãos de poder, a banca, os jornais e as televisões. Um só homem, apoiado em peritos na utilização do Estado e do direito, consegue pôr em cheque o sistema de justiça e vários governos. Um especulador, especialista em despertar a libido dos ministros, foi capaz, com a promessa de dar lustre artístico ao governo, de conquistar a idolatria dos clientes, a cumplicidade do governo e o silêncio das instituições artísticas do país. Usou e foi usado, mas imprimiu o seu toque especial.
Um outro homem, apoiado num partido, com a colaboração de ministros, advogados e predadores de várias origens, exerceu seis anos o cargo de Primeiro-ministro e deixou marca profunda na história da vilania política, enfraqueceu as instituições, transformou políticos em agentes sem mérito nem qualidade, mas com uma capacidade de impostura só comparável à sua covardia.
Outro homem, com família, reputação e fortuna, soube condicionar a seu proveito a economia do país, as suas finanças e muitos políticos, conseguiu contribuir decisivamente para a destruição ou a alienação da banca portuguesa e de algumas das melhores empresas, numa acção única da história do país, só talvez comparável aos estragos feitos pelas revoluções.
Há mais casos que ensombram e atormentam os nossos dias. Greves de camionistas que, em poucos dias, deixaram uma sensação de pânico. Ameaça permanente de incêndios que revela a falta de previsão, a preparação da última hora e a dependência de traficantes. Adquirido em suspeitíssimas circunstâncias, o sistema de comunicações de segurança revela-se incapaz de dotar o país daquilo para que foi encomendado, eficiência na emergência. Um roubo de material de guerra levado a cabo em estranhas condições que deixaram as Forças Armadas em questão, o governo em cheque e as polícias em crise. As comissões de inquérito parlamentar, neste caso sobre questões de energia, aprovam o que a maioria quer e lhe convém.
Este breve catálogo peca por defeito. O pior nem é a gravidade dos crimes e do abuso. O pior é que a sociedade, o Estado e as instituições permitem o que nos acontece. Assim se revela a incapacidade de regular e vigiar. A ausência de instituições livres e eficientes. A morosidade das polícias e dos tribunais. A miopia de muita imprensa. A facilidade com que as elites económicas, políticas e artísticas se deixaram aliciar e seduzir. A covardia ou a cupidez de muitos que vão sempre sabendo o que se passa, mas calam ou só revelam quando lhes convém. A falta de agilidade dos organismos públicos incapazes de reagir prontamente. O pior é que as instituições políticas e judiciárias não estão à altura dos criminosos.
O nepotismo faz evidentemente parte da teia complacente. As famílias dos ministros, mulheres e maridos, filhas e filhos, genros, irmãos, netos e sobrinhos, estão incluídos. É estranho que a esquerda, ainda por cima a esquerda democrática, que tanto diz lutar pela igualdade, contra o nepotismo das aristocracias, pelo laicismo, pela neutralidade do sangue e da condição social, é estranho que esta esquerda seja cúmplice. Tinha de ser a esquerda democrática que viria, com hipocrisia, a valorizar a conjugalidade na política e a defender o velho principio da moral corrupta e do nepotismo: “Não é por ser da família de alguém, que uma pessoa pode ser penalizada!”.
Não são só as famílias, nem os políticos. Perto deles, a par deles, às suas ordens ou no seu comando, estão os escritórios de advogados poderosos, com meios e pessoas, com reputação e força, conhecedores de segredos de pessoas, de partidos e de empresas. Apoderaram-se do Estado e dos ministérios, recebem encomendas para contratos, acordos, cadernos de encargos, PPP, operações financeiras, defesa do Estado contra privados e defesa dos mesmos privados contra o mesmo Estado. Esta espécie de Mamelucos do direito exerce hoje tanta ou mais influência do que grupos privados, sindicatos, partidos políticos, igreja católica ou maçonaria!
O que também enfraqueceu o Estado democrático foram as privatizações e as reprivatizações que moldaram a política e a economia das duas últimas décadas. Feitas aparentemente pelas boas razões, por espíritos liberais, concebidas para libertar a sociedade e a economia, levadas a cabo com as melhores intenções expressas, acabaram por ser o leilão histórico de empresas, a destruição de algumas, a alienação irreflectida de outras e a entrega de poderes a grupos de predadores nacionais e estrangeiros. Assim se liquidaram, alienaram ou miniaturizaram empresas e sectores como os telefones, os cimentos, a electricidade, os petróleos, a rede eléctrica, o gás, os correios e outras.
Catervas de políticos à solta, bandos de capitalistas (nem todos empresários…) e de traficantes de influência (nem todos ilegais…), associados a advogados e seus escritórios, ligaram-se ao poder político com mais profundidade e mais intimidade do que o Estado Novo salazarista ou o comunismo de Cunhal e Gonçalves e estreitaram o seu conúbio com dois partidos, o PS e o PSD. Governam a sociedade e a política. E até agora não encontram diante de si instituições livres, independentes e eficazes que lhes ponham travão. É o que faz um país vulnerável.
Público, 19.5.2019
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