segunda-feira, 8 de março de 2010

Vinte anos depois...

.
Uma vez na vida... Sempre foi uma ambição: ser director de um jornal! Por um dia, a direcção do Público concretizou esse desejo adolescente. A ideia de que ser director de jornal permite ter influência é aliciante. Informar, ajudar a pensar, corrigir o erro, promover a decência e a cultura, defender a liberdade e denunciar os abusos parecem ser tarefas fáceis, desde que se possa dirigir um jornal. O sonho é simples. Depois, tudo se complica. É necessário negociar com a realidade, a publicidade, o accionista e a redacção. É preciso acertar, ser isento, saber com quem se fala, perceber as aspirações dos leitores, convencer e argumentar. Após quarenta anos de colaboração em jornais, vinte dos quais no Público, percebi os limites do ofício. Mas é, em qualquer circunstância, uma extraordinária profissão e uma excepcional missão. Informar com independência, ajudar a pensar e contribuir para a liberdade dos cidadãos é um formidável programa.

Apesar de defeitos e de erros, este jornal distingue-se, hoje e nestes vinte anos, pela qualidade e pela seriedade. Deve o seu papel aos directores mais duradouros, Vicente Jorge Silva e José Manuel Fernandes (sem esquecer os episódicos Francisco Sarsfield Cabral e Nicolau Santos, nem a recém-chegada Bárbara Reis), assim como aos vários membros da direcção editorial, alguns dos quais ainda por aqui andam vinte anos depois. Mas também é devedor do extraordinário accionista que garantiu, com elevados custos financeiros e políticos, meios e independência durante duas décadas.
Desde o seu aparecimento, o Público ilustrou-se por algumas características, entre as quais a inovação e a responsabilidade. Viveu anos de desenvolvimento e consolidação, mas também de crise e instabilidade. Os seus jornalistas não foram infalíveis, mas a criação de uma equipa coesa é um feito de um percurso relevante. O rigor e a seriedade não se festejam: constituem o dever do jornal e dos jornalistas. Mas, num país complacente, cumprir o dever é já assinalável. É todavia indispensável pensar que esses atributos não nos são exclusivos. O que pode fazer a diferença e a força de um grande jornal é a sua independência.
Toda a imprensa escrita está ameaçada. O Público não escapa. A digitalização e a informação instantânea são as responsáveis. Todos os prognósticos, optimistas ou catastróficos, têm alguma razão. Ninguém, realmente ninguém sabe o que irá acontecer dentro de poucos anos. Teremos ainda jornais? Serão estes apenas recordações ou “nichos” do mercado para uns tantos incorrigíveis? Conhecerão novas formas? Uma coisa é certa: a liberdade de expressão, o acesso à informação e a criação cultural estão em causa. Se os homens e as mulheres do nosso tempo estiverem atentos, poderá ser para o melhor. Mas não é certo...

Este número do jornal respeita a agenda de um diário e as regras de uma rotina essencial. Mas tentei acrescentar colaborações e investigações com um denominador comum: os últimos vinte anos, os mesmos que constituem a vida do Público. Foram anos que deixaram marcas, tanto na vida nacional como no mundo. A economia cresceu como jamais, a crise financeira explodiu como nunca. Mais de duma dúzia de guerras, com relevo para a antiga União Soviética, o Ruanda, o Uganda, o Congo, o Sudão, a Somália, a antiga Jugoslávia, a NATO, os Estados Unidos, o Iraque e o Afeganistão, fizeram milhões de mortos, de deslocados, de refugiados e de órfãos. Ao mesmo tempo, por esse mundo fora, a corrida ao estatuto de democrata, com e sem reais méritos, impressionou os mais cépticos. A globalização consolidou-se, abrindo fronteiras e nações e ajudando centenas de milhões de esfomeados a sobreviver, mesmo se em situação de quase trabalho forçado. Mas essa mesma globalização destruiu empresas e comunidades, vidas e esperanças, assim como contribuiu para a expansão de duas chagas perenes: a SIDA e o terrorismo. Sonhos aparentemente impossíveis realizaram-se: terminou a guerra fria e acabaram o comunismo e o apartheid. Mas vivemos hoje sob permanente ameaça, o que é bem visível na segurança pública, nos sistemas de vigilância, nos cuidados com os viajantes de avião, nas escutas telefónicas, na intrusão à vida privada... Computadores, Internet, telemóveis e redes sociais transformaram a vida de toda a gente em menos de vinte anos. Ao mesmo tempo que multiplicaram as vias e os instrumentos de informação e demoliram fronteiras e obstáculos à difusão, aquelas tecnologias e os novos hábitos mostraram também que poderiam constituir-se em novos condicionamentos de controlo. A futilidade parece reinar nas nossas vidas. A informação orientada e racionada é hoje uma prática corrente. Por isso, nunca, como hoje, a profissão de jornalista foi tão decisiva para a liberdade e a autonomia dos cidadãos. Poderes públicos e grupos privados têm ao seu alcance um inacreditável arsenal de meios e instrumentos para condicionar, dosear e embalar os factos, para já não dizer disfarçar e alterar a verdade. Uma vez mais, a grande arma de defesa dos cidadãos é a independência da informação.

Em Portugal, foram igualmente vinte anos de enormes consequências. De mudanças. De novas incertezas. Com a ajuda da liberdade e da Europa, os Portugueses progrediram indiscutivelmente. Mas também perceberam que as décadas de prosperidade e de progresso chegavam ao fim. Desde o início do século XXI, Portugal começou a perder terreno perante os seus parceiros. Ao lado de alguns melhoramentos notáveis, como na Saúde pública, sectores inteiros, como a Justiça e a Educação, afundam-se na crise crónica, na incapacidade de mudança, no desperdício ou na mediocridade. A Justiça, muito em particular, transformou-se no pesadelo de todos, na impotência dos cidadãos, na hipoteca das liberdades e na incerteza do Direito e dos direitos. A Ciência teve uma expansão notabilíssima, mas o ensino superior viu-se relegado para uma posição inferior e as Universidades foram menorizadas. Os Portugueses, ricos em aspirações, deixaram de conhecer limites à sua ambição, em muito superior às suas capacidades. Estimulados por governos sequiosos de apoio nas sondagens, gastaram o que tinham e não tinham, a ponto de, como alguém disse, parecerem não ter filhos: vivem hoje carregados de dívidas. Melhor, sem qualquer dúvida, do que há vinte anos. Mas pior do que há dez. Quase perdemos a agricultura, a floresta e o mar, recursos naturais de alto valor, mas desperdiçados pela facilidade da vistosa obra pública. O produto e o valor acrescentado, com origem nos recursos naturais e na indústria transformadora, cifram-se em cerca de um terço do valor nacional: esta a mais aterradora deficiência das nossas capacidades. O défice externo de bens e pagamentos, o endividamento e o serviço da dívida só têm solução se forem servidos pela disciplina, pelo trabalho, pelo sacrifício e pela credibilidade política. Actualmente, são todos insuficientes.

Ninguém ou quase ninguém está isento de responsabilidades na situação a que chegámos: Governo, autarquias, empresas e cidadãos. Mas, se é necessário o esforço de todos, é evidentemente para as elites políticas e económicas que olhamos com mais insistência. Delas não depende tudo, mas, sem elas, não haverá orientação do esforço nem desenho do rumo a seguir. Ora, francamente, não parecem hoje estar à altura das necessidades e da urgência. Delas se exige uma excepcional capacidade de entendimento e de sacrifício das suas pequenas vaidades. É bom que saibam que há já quem duvide que seja possível resolver os nossos problemas com democracia. Se, além de ficarmos mais pobres, perdemos liberdades, então o drama será completo.

«Público» (Editorial) de 5 Mar 10

Sem comentários: