terça-feira, 11 de março de 2014

"É preciso um acordo global entre partidos a cinco ou dez anos" (*)

"O PSD hoje faz uma coisa e no dia seguinte o PS ganha, faz o contrário ou desfaz tudo. Já há, aliás, várias medidas tomadas pelo atual Governo para as quais o PS já disse "quando chegarmos ao poder, daqui a um ano, limpamos tudo, fazemos o contrário". As coisas são tão profundas e tão importantes na autarquia, na saúde, na educação, na segurança social, na justiça, que é necessário haver um acordo de longo prazo. Eem Portugal qualquer ideia relativa a um acordo entre partidos ésempre malvista."  
 
"Parte da elite política e dos partidos não quer acordos alargados"  
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António Barreto já foi comunista durante a ditadura, fez-se membro do PS em 1974, apoiou a AD de Sá Carneiro e depois Mário Soares, na candidatura à Presidência da República. Já tinha sido secretário de Estado e ministro, mas há mais de 20 anos que deixou a política ativa. É sociólogo, preside à Fundação Francisco Manuel dos Santos, onde criou o portal de informação estatística PORDATA.

Também já presidiu às comemorações do Dia de Portugal, por escolha de Cavaco Silva, e é uma voz livre, que acha que em Portugal há muita opinião e pouco estudo, muitos palpites e pouca reflexão. E para ele não há dúvida: Portugal precisa de um entendimento entre PS e PSD que possibilite reformas de longo prazo. Nesta entrevista ele explica porquê.

- Como é habitual, pedimos que escolhesse três temas para abordarmos. Começou por "a reforma do Estado: o quê, por quem, quanto tempo." Acredita que a reforma do Estado já tenha começado? Algumas pessoas no Governo dizem que sim, que está em curso há dois anos. Está ou não?  


- Não... [risos]. Por motivos de necessidade, pela austeridade, pelo programa de ajustamento, pelos problemas financeiros, pela falência do Estado do ponto de vista financeiro e até económico, no investimento, etc, começaram a fazer-se certas coisas em todos os ministérios que eram obrigatórias. Para poupar. Fizeram-se umas bem, outras mal, outras assim-assim, como sempre na vida quando se fazem coisas a correr, num frenesim. Fizeram-se muitas coisas em cada um dos sectores para os quais olho. Mas pergunto-me sempre: vamos lá ver se de facto foram reformas estruturais.

- E foram, em algum sector?... Dê-me um exemplo de um desses sectores.  

- Transformação da rede dos municípios. São 308. Porque não 200, porque não 140?

- Eliminámos algumas freguesias.  

- Pois... A freguesia é o recheio do peru, e o peru continua lá. O importante são os municípios, não são as freguesias. Há muitas soluções possíveis. Podíamos optar por um só tipo de autarquia. Há países... Por exemplo, a Suíça tem duas ou três mil comunas, mas não tem nada abaixo da comuna! Há comunas muito pequeninas, que têm 15 mil pessoas e cujos vereadores se ocupam de cortar as árvores e de limpar as ruas, e há comunas como Genebra ou Zurique, que são grandes cidades, e que são estruturas adaptadas às diferentes situações. Nós aí nada fizemos. Outra questão estrutural, a da relação entre medicina privada e medicina pública, que não está resolvida, nem pouco mais ou menos. Continua a haver médicos dos dois lados...

- E em cada um desses campos, o que vê são os interesses do PS e do PSD que os impossibilitam de ter uma visão comum?  

- Mais ou menos. Já começa a ser uma espécie de teoria de papagaio: quando um diz uma coisa o outro diz exatamente o contrário no dia seguinte. No último ano, depois do desvario, daquele exercício de verão com o Presidente da República, o PS e o PSD, em que podia haver eleições, podia não haver eleições e podia haver um pacto, e deixou de haver... A partir de então, basta o Governo dizer A para no mesmo instante, ou uma hora depois, o PS vir dizer B.

- Devo concluir, daquilo que está a dizer, que não acredita que vá ser possível fazer uma reforma do Estado, e dos seus gastos, nos próximos tempos em Portugal?  

- Não acredito enquanto não houver um acordo global a médio prazo, nunca menos de cinco, dez anos, no qual participe a maioria dos partidos políticos, sobretudo os mais importantes, com a participação das empresas, do sindicalismo, e de outros tipos de interesses. Lembra-se do acordo de Moncloa lembra-se dos acordos feitos na Alemanha, na Holanda, em França? Há em quase todo o sítio. Tem de haver em Portugal.

- E é essa também a resposta à pergunta que fez, "o quê, por quem, em quanto tempo?"  

- "O quê" é determinar quais são os principais pontos para os quais é necessária reforma. Na educação, o mais sério, o mais importante, nem se toca na relação entre a escola e a comunidade. A relação entre a escola e os pais, entre a escola e os autarcas, isso é que é uma reforma estrutural! Saber até onde é que vai o currículo nacional, onde é que há um currículo diversificado, qual é a relação dos professores com a escola ou a relação dos professores com o ministério, isto é que é a reforma estrutural! Mas nem se lhe toca! Porque é grave, porque é sério, é problema para durar muito tempo e que não se pode resolver na dependência do puro resultado eleitoral. O PSD hoje faz uma coisa e no dia seguinte o PS ganha, faz o contrário ou desfaz tudo. Já há, aliás, várias medidas tomadas pelo atual Governo para as quais o PS já disse "quando chegarmos ao poder, daqui a um ano, limpamos tudo, fazemos o contrário". As coisas são tão profundas e tão importantes na autarquia, na saúde, na educação, na segurança social, na justiça, que é necessário haver um acordo de longo prazo. E em Portugal qualquer ideia relativa a um acordo entre partidos é sempre malvista.

- Os estudos de opinião revelam que os portugueses querem acordos alargados...  

- Quem não quer é uma parte da elite política, uma parte importante dos partidos políticos. E na imprensa, que vive a informação de uma maneira mais ativa, enérgica, mais adversarial e contraditória, não tem bom acolhimento a ideia.

- Já disse que era o momento de criar grupos de reflexão, de começar a estudar para depois se poder fazer a verdadeira reforma do Estado. Acha que os nossos credores aceitarão que, em benefício da qualidade dessa reforma, se atrase um pouco os timings?  

- Não falo por eles, não sei o que pensam. Os credores não têm nada que dizer sobre este assunto. Repare no QREN. É um programa de investimentos a seis, sete anos, de 24 ou 25 mil milhões de euros. Sobre isso, não era importante haver um acordo de dois terços dos representantes políticos? Era vital! Não vai haver, porque eles não querem. Nem o PSD quer o PS nem o PS quer o PSD. Começassem a trabalhar já, independentemente das eleições europeias, independentemente das eleições do ano que vem... E há circunstâncias inspiradoras. Em Espanha, em 1977, houve o acordo de Moncloa Na Alemanha temos uma grande coligação. Há países na Europa com três, quatro, cinco partidos no governo. (Continuando) Há também a revisão da Constituição: conforme a altura, conforme o partido e conforme as circunstâncias, quem fala em revisão da Constituição é logo acusado de qualquer coisa: fascista, comunista, salazarista, qualquer coisa. Já se fizeram seis ou sete revisões constitucionais, duas das quais muito importantes mesmo. Não foi o suficiente. Esta Constituição serviu quase na perfeição durante dez anos, foi uma espécie de apólice de seguro da democracia, contra todos os vícios. Simplesmente, isto não resulta para poder governar, não resulta para o futuro.

- Neste momento, vê que seja absolutamente fulcral avançar para uma revisão constitucional?  

- Passos Coelho foi às eleições dizer que queria a revisão. Tentou fazê-la e no dia seguinte enterrou-a logo.

- Da forma como ele a procurou fazer, não teria consenso com o PS.  

- Até às próximas legislativas, não vai haver nenhum resultado. Pode haver é reflexão! E os dirigentes dos partidos políticos portugueses têm de deixar de ter medo do pensamento. Têm de pensar, têm de refletir, de estudar!

- A reforma do sistema político, que também advoga, poderia ajudar a resolver esse problema da relação da classe política com o que é o interesse geral, a necessidade de ter acordos?  

- Sim! Por exemplo, dentro da reforma do Estado, outro assunto de que nunca se fala, além da revisão constitucional, um instrumento da reforma do Estado, é o sistema eleitoral. Ninguém hoje dá três vinténs pelo sistema eleitoral que temos.

- Já se fez muita reflexão sobre essa matéria, mas nunca foi possível chegar a um acordo...  


- Já. Mas a decisão nunca é em nome do interesse público, é sempre em nome da circunstância eleitoral.
 - Nos últimos tempos, sempre que se tem falado de reforma do Estado fala-se do Estado social. No fundo, estamos a falar de segurança social, saúde, escola. Esses também são, para si, os eixos fundamentais de uma reforma do Estado ou seria muito mais do que isso?  

- E muito mais do que isso. Também é a parte política, a territorial, a administrativa, a autárquica. Um capítulo da reforma do Estado é o Estado social, sim, que tem de ser revisto e revisto.

- E vê razão para tanta barafunda no espaço público entre o PS e o PSD ou os pontos de contacto são muito mais evidentes do que aquilo que resulta da discussão que se está a ter publicamente?  

- Sabemos que há mais proximidade do que parece, mas como é uma boa arma de arremesso....

"Estamos melhor mas ainda não estamos bem"

- Sempre que fala, a propósito de qualquer coisa, somos sempre tentados a pensar que nas suas respostas há sempre a mesma coisa implícita: os políticos, em Portugal, olham pouco para os números e estudam pouco. É isso mesmo que pensa?  

- É exatamente isso que penso. Resulta do trabalho que fiz, por exemplo, na PORDATA, ou antes da PORDATA numa coisa chamada Situação Social em Portugal, que também foi uma publicação estatística enorme. Primeiro, uma estatística não tem nada de sexy. Porque é que fiz isso? Foi por ter verificado que, em Portugal, o mais fácil do mundo é fazer política na base da opinião e nunca na base dos factos. Você nunca pergunta às pessoas o que elas querem! Você é retórico, o Governo é capaz de fazer uma reforma na saúde, na educação, no que quer que seja, sem perguntar às pessoas o que é que elas pensam, sem perguntar aos juizes, aos advogados, aos réus, aos solicitadores, sem perguntar aos médicos, aos enfermeiros, aos doentes, às associações, sem perguntar aos administradores hospitalares. Fazem política sempre em frente! Eu colaborei na lei de bases do sistema educativo, era deputado na altura. Numa comissão especializada para isso, sentámo-nos os cinco grupos parlamentares, e fiz uma lista com 60 pedidos ao Governo. Número de estudantes, o número de professores, o número de chumbos, quem é que passava, quem não passava, o que é que se gastava por cabeça.

- E sabiam?

- Não sabiam! As respostas chegaram seis meses depois da lei aprovada, a lei foi aprovada na exclusiva base de opiniões!

- Se ainda estamos a contar os carros que existem na administração pública...  

- Bom exemplo.

- Se um partido político, qualquer que ele seja, pedisse ajuda à fundação, e à PORDATA em particular, para obter dados sobre determinadas matérias, para poder fazer propostas mais trabalhadas, estaria disponível?  

- Se é um pedido de dados, damos tudo o que temos. Se é para colaborar com partidos políticos, não. Temos um site que está a começar cada vez mais a ser visto, chamado Conhecer a Crise, estamos a tentar publicar dados de três meses, mensais, trimestrais, porque os nossos dados da PORDATA são anuais. Nestas dificuldades económicas e sociais, é bom saber como é que as coisas estão a correr aos três meses, ou aos seis meses. Como é que as pessoas estão a comer? Estão a comer mais ou menos coelho, mais ou menos frango, mais ou menos azeite, mais ou menos óleo? Isso é interessante. O resultado dessas coisas dá logo um sinal e vê-se muitas vezes, em pormenores, nas dívidas, no cartão de crédito, nos despejos, nos despedimentos e na comida, onde é que as coisas estão a mexer. Esse género de coisas, qualquer partido político, qualquer instituição pode pedir. Nós damos tudo o que temos, se soubermos. Colaboração bilateral com um partido, não.

- Olha muito para os números. Nos últimos dois anos começam a aparecer alguns indicadores macro que parecem alimentar expectativas positivas. Estamos melhor ou estamos pior?  

- [Sorriso] Estamos ligeiramente melhor do que há três anos, no estrito sentido que parece termos evitado a bancarrota e o pior, de que iríamos pagar cem anos. Nisso estamos ligeiramente melhor. Há um bocadinho de músculo. Mas não estamos melhor ainda porque não andamos bem. As pessoas não estão a viver melhor, ainda estão a viver pior do que há quatro ou cinco anos, quando só havia a dívida. Fui operado há pouco tempo e estou a fazer fisioterapia. O joelho já tem músculo e já ando; e já não se vê que estou manco, mas ainda sinto que está cá qualquer coisa. Portanto, preciso ainda de mais um bocado para poder dizer "estou mesmo melhor".

- Qual a maior ameaça, para o Estado social? A financeira, porque vivemos uma crise financeira grave, ou a ideológica, que possa existir de uma clivagem entre PS e PSD?  

- Ideologia há sempre. Quando vejo um partido acusar outro de ideologia dou sempre uma gargalhada, porque estão ambos a ser ideológicos. É bom ser ideológico, isto é, defender ideias e princípios, mas defendê-los com números e com factos e saber do que estamos a tratar. Quantos reformados vamos ter daqui a 20 anos? Há dinheiro para isso? Quantos reformados vamos ter daqui a 40 anos? Há dinheiro para isso? Há um número que gosto sempre de recordar a mim próprio, para nos pôr no sítio: há 30,40 anos, em Portugal, havia 150 mil, 130 mil reformados e pensionistas. Hoje há três milhões. Esta é a diferença, são as balizas da diferença que criam um problema sério.

- Essa é a medida do avanço do nosso bem-estar social, mas também a medida do nosso problema?
 

- É. Por exemplo, sou favorável à manutenção de um Serviço Nacional de Saúde. Foi talvez o que de melhor em Portugal se fez nestes 40 anos. Melhor do que se fez na educação, melhor do que se fez na justiça - aqui nem comparação -, melhor do que se fez na segurança social. E, portanto, vamos preservar muito disto. Mas também já se sabe que este sistema não é eficiente, há muita gente em filas de espera, há acidentes que acontecem com frequência por falta de tempo, de espaço nos hospitais, portanto, é necessário alterar algumas coisas. Por outro lado, há o dinheiro: a despesa da saúde, já toda a gente sabe no mundo inteiro, é exponencial, não tem limite, é infinita. Mas o que as pessoas ganham, o que as pessoas rendem, o que as pessoas trabalham, é finito. Tem de se encontrar também uma solução para isto. Todos os partidos o sabem, não têm é coragem de o dizer e de aceitar que é necessário começar a estudar.

- Não têm coragem ou os interesses que estão dentro desses partidos assim o exigem?  

- Pode ser as duas coisas.

- Falta dimensão aos líderes para além dos grandes interesses que atravessam os partidos?  

- Pode ser as duas coisas... Vejam a questão, por exemplo, da medicina privada e da medicina pública. Sempre fui defensor da separação de águas. Um médico que é médico no público, que não seja médico no privado, e vice-versa. E eu encontro gente que pensa a mesma coisa nos dois ou três partidos. Mas depois, quando chega a altura...

- É a diferença entre estar na oposição e no Governo, que marca muito o PS e o PSD?  

- Infelizmente, é. E era por isso que eu achava que um grande esforço de entendimento devia ser forçado pela opinião pública, por vocês, jornais, rádios, universidades.

- "Coesão social: efeitos da troika, consequências a médio e longo prazo", foi o segundo tema que escolheu para esta conversa. Acabado este ajustamento, daqui a uns meses, se as coisas correrem bem, estaremos mais bem preparados para enfrentar o futuro? Ou, pelo contrário, este ajustamento e esta crise deixaram demasiada gente para trás e as consequências, as mais graves, ainda se vão fazer sentir?

- Respondo 'sim' às duas perguntas, que parecem contraditórias mas não são. Creio que nalguns sectores da economia, nalguns sectores do pensamento, da reflexão e da economia real, há domínios que estarão hoje em melhores condições de enfrentar os anos a seguir. Muita gente percebeu que o consumo e a poupança são duas entidades em que se deve mexer com cuidado. Estão a aumentar os níveis de poupança, que é para mim uma surpresa agradável. Portanto, há sectores, situações, segmentos da população que vão estar melhor, mas cujos resultados só se sentirão se ho u ver bom enquadramento, isto é, uma boa política para os próximos anos. Para mim, o caso mais flagrante da maior falha do Governo atual foi que muito pouco se fez para preparar o investimento futuro. Estava à espera de que, desde há três anos, aparecesse um novo código de investimentos, uma simplificação dos processos, dos contratos com as empresas mundiais que podem vir para Portugal para a criação de emprego. Com capitais nacionais ou estrangeiros, não é só capitais estrangeiros, e já ouvi dizer aí que há quem queira beneficiar os capitais estrangeiros em detrimento dos portugueses. Este novo enquadramento geral do investimento, com a burocracia, a justiça, foi muito pouco estudado. Depois, há a segunda parte da pergunta: há quem tenha ficado para trás. Há quem se tenha ido embora. É pena que ainda hoje não se saiba quantos é que se foram embora nos últimos anos. Há tanta demagogia a propósito das consequências da troika Todos os dias vejo nos jornais, na imprensa, ou na rua, em qualquer sítio, que há mais suicídios, mais tuberculosos, mais crime, mais homicídios, mais divórcios, mais mortalidade infantil...

- Isso são consequências sociais do plano de ajustamento?  

- Isso é o que toda a gente diz.

- Mas não é verdade?  

- Em parte não é verdade. Cada vez que me dizem "no ano passado houve menos 500 crianças do que no ano anterior, isto é a crise", a primeira coisa a fazer é ir ver como é que foram os últimos dez anos, e depois ver qual é a evolução! Há situações da natalidade que fazem pensar que talvez - talvez! - nos próximos cinco anos se confirme uma tendência para uma redução suplementar, mas não vamos esquecer de que estamos em redução há 40 anos!

- A troika não é responsável por tudo aquilo que aconteceu em Portugal...?  

- Não. São os portugueses! São os responsáveis por tudo o que aconteceu em Portugal, desde o desvario do endividamento, da dívida, de ter de chamar a troika - e por tê-la cá naquelas circunstâncias, por se ter adiado um, dois, três anos, o que podia ter sido feito antes em muito melhores condições. Nós chamámos a troika...

- ...No limite?  

- No limite da guilhotina. Já a lâmina vinha a cair, alguém pôs lá uma mãozinha, o que eu agradeço, porque se a guilhotina tivesse caído era um bocadinho pior. Agora, nós somos os responsáveis do que fizemos. Houve especulação financeira mundial? Houve, no mundo inteiro, não foi só em Portugal. Houve banditismo financeiro americano e multinacional? Houve, no mundo inteiro, não foi só em Portugal. O que aconteceu de mal a Portugal aconteceu no mundo inteiro, mas nós estávamos particularmente mal preparados para isso.

- Há pouco, ia falar da natalidade. A natalidade foi colocada agora no centro das atenções pelo Governo. Esse é um dos problemas ou é mais um chavão?  

- Já é, pelo menos, o terceiro ou quarto Governo que nos últimos 30 anos faz da natalidade o problema mais importante do País. E eu acho que, em grande parte, é demagogia. Já há quem tenha oferecido cheques de 200 euros a receber 18 anos depois... Houve um candidato a primeiro-ministro que disse, um dia, "eu em quatro anos de Governo farei aumentar a natalidade 3%"!... Isto são tolices medonhas porque não se mexe na natalidade assim, nem com 200 euros, nem com ação do Governo, nem sequer com creches. É um conjunto de medidas, de ações, de sistemas, ao longo do tempo...De décadas! A França tem uma política natalista há 80 ou 90 anos!

- Isso é resultado também da evolução económica do País?  

- Os valores são diferentes. As pessoas muito conservadoras e muito reacionárias gostam muito de dizer "hoje já não há valores". Isto é errado. Hoje há valores, são é diferentes do que eram há 40 ou 50 anos. Dito isto, é verdade que vale a pena estudar a demografia e prever, como fizemos na Fundação Francisco Manuel dos Santos ou na PORDATA, e no estudo que está agora a acabar de decorrer, que fizemos a meias com o Instituto Nacional de Estatística sobre a fecundidade. É verdade que dentro de 30 anos, ou 40, pode haver em Portugal sete milhões de habitantes. É verdade!

- E isso é bom ou é mau?  

- Se for essa a escolha dos portugueses, é o que deve ser, primeiro. Segundo, pode ser mau. Isto é, esses sete milhões podem ser um grupo de pessoas tão idosas, com tão pouca vitalidade para trabalhar, para pensar, para estudar, para imaginar, seja para o que for, que o País se transforme numa espécie de estaleiro de idosos. E depois, das duas uma: ou assim fica ou é uma estação de férias para os países mais ricos e os países com mais genica, ou então pura e simplesmente, que é outra solução, vêm pessoas de África, da Ásia, da América Latina...

- A imigração. Vivemos num mundo globalizado. Se Portugal tiver condições económicas para produzir e para exportar, nós que somos um País de emigrantes, podemos olhar também para a imigração como ajudando a resolver esse problema da falta de natalidade e envelhecimento da população?  

- Com certeza. Vai ser inevitável que Portugal tenha novamente, daqui a dez ou 20 anos, novas vagas de imigração. Como naquele pequeno período nos anos 1990, em que de repente apareceram em Portugal meio milhão de estrangeiros, brasileiros, ucranianos, moldavos, cabo-verdianos, guineenses. Para os meus valores é bom que Portugal seja uma sociedade plural e não seja uma sociedade homogénea, tudo igual uns aos outros.

- Quando se fala na coesão social, fala-se também da reestruturação nas infraestruturas, hospitais, tribunais, escolas. Como é que olha para essa realidade?

- Acho que alguns desses passos foram muito bem dados. Uma das causas, nos últimos 30 anos, da segunda vaga de decréscimo da mortalidade infantil, quando estava a 10 ou 15 e foi trazida até aos 2,3 por mil, ficou a dever-se muito ao desaparecimento de centenas de maternidades que não o eram e à organização de um serviço de assistência neonatal às mães em risco ou às crianças acabadas de nascer em risco. Era necessário fechar maternidades que se julgavam capazes e não tinham os meios necessários. Criar ambulâncias que fizessem os cinquenta quilómetros até Lisboa, até ao Porto ou até Faro. E portanto, foi feita uma reestruturação, muito combatida, como se lembram, e na qual colaboraram as ministras, aliás, muitas mulheres, a Leonor Beleza, a Maria de Belém, mais duas ou três, o Correia de Campos...

- ...Que pagou politicamente por isso...  

- Pagou por todos. E ele tinha razão em tentar reestruturar e aprofundar a reorganização do sistema de saúde. Entre nós, o que me mete medo é que quando se começa a fazer uma coisa, geralmente, depois vai-se longe de mais. É como com as escolas.

- O racional dessas medidas é sempre o número de pessoas que vivem nessas regiões. Isso não é também um contributo para uma desertificação rápida do País?  

- Pode ser. Não chamo desertificação, é despovoamento. A sociedade moderna vai ser uma sociedade em que não há tanta população rural quanto havia no passado ou hoje. Isso não me preocupa.

- Isso é a tendência universal, a concentração nas grandes cidades.  

- É. Preocupa-me é que o despovoamento seja acompanhado de desertificação no sentido de abandono, porque a desertificação implica perder recursos, águas, florestas, produção agrícola, localidades para turismo. Há sítios no mundo, na Escócia, na Alemanha, nos Estados Unidos, na França, na Itália, despovoadíssimos, ainda mais do que Portugal, que são sítios belíssimos ou interessantes do ponto de vista turístico,cultural, ou para a saúde, caça, flora, ou para produzir! Portugal precisa de produzir floresta em grandes quantidades e para isso, muitas vezes, é melhor despovoar. Se for feito sem atenção, chama-se desertificação e pode ter muito maus resultados. Se for feito com atenção, chama-se despovoamento e eu não sou desfavorável. Fui visitar escolas no Alentejo, aindahá dez anos, que tinham três, quatro, cinco alunos. O processo pedagógico, social, cultural, psicológico, de formação destes alunos não é aceitável! Estes miúdos têm de ter 20,40,50 colegas, têm de mexer-se de uns lados para os outros. Mas depois os ministérios perdem a cabeça, os diretores-gerais perdem a cabeça e em vez de quatro é dez, depois em vez de dez são 20, depois dos 20,40, e depois não se repara, não se faz a diferença. Há sítios onde se justifica uma escola de 20 alunos.

- Passamos para o terceiro tema. Há pouco dizia que tinha uma certa preocupação por ver que o Governo não preparou o investimento económico para um futuro breve e por isso propôs debater "as condições políticas para o desenvolvimento económico". O que é que podia ter sido feito aproveitando este ajustamento?  

- Estudo e inquérito real a milhares de empresários portugueses e estrangeiros. Para saber exatamente o que é que os faz vir para Portugal, oqueéque os faz sair. Há cinco anos, fui convidado a assistir a uma reunião em que um secretário de Estado ia falar com umas dezenas de empresários. Anunciou as 200 medidas que ia tomar. Quando terminou, o primeiro empresário que estava na sala pediu a palavra e disse: "O Estado anuncia isso tudo, eu fico muito contente e gostava muito que muitas dessas medidas fossem, efetivamente, tomadas. Isto vai demorar muito tempo, eu propunha-lhe só uma coisa: o Estado podia começar a pagar o que deve aos empresários, e com grande rapidez, e eu já não queria mais nada. E o secretário de Estado, diante de toda a gente - o desplante é que é espantoso -, disse: "O senhor, se não se importa, no fim da reunião dá-me o seu nome e fala com a minha secretária que eu vejo o seu caso e resolvo." Isto não é política de investimento. Portanto, primeiro, estudar o que os empresários querem e precisam, saber para o que estão disponíveis e o que querem fazer, o que é preciso para eles voltarem ou aumentarem os seus investimentos. Depois disso, falar seriamente com os sindicatos e ver em que é que podem contribuir.

- E podem?  

- Acho que sim.

- Não os acha, alguns, talvez a maior parte, um tecido muito

- Está à espera de que eu lhe diga... os da Autoeuropa contribuem para o desenvolvimento e para o investimento.

- A Autoeuropa é só uma.

- Mas há mais empresas. Talvez não tão poderosas.

- Há um sindicalismo mais moderno a emergir?

- Creio que sim, que é o sindicalismo de empresa. O sindicalismo nas empresas, não nos sectores, porque quando se mete o sector em que vem, de um lado, a empresa de informática ou de química mais moderna do mundo, e do outro lado um vão de escada completamente perdido...

- Olhamos para os sindicatos e vemo-los muito atravessados pelos interesses dos partidos. Não vê também isso ainda assim, hoje?  

- Vejo. Mas sabe que quando você chama as pessoas, elas são capazes de dar o melhor de si. Se você chamar, você Governo, você patrões... Os patrões falam pouco diretamente com os sindicatos.

- E quando falam, como é o caso da Autoeuropa, dá resultado?  

- Dá. Se os patrões estão disponíveis para falar e para encontrar soluções, encontram soluções. Para o investimento, não esqueça: burocracia, justiça, contratos a longo prazo, estabilidade fiscal e legal.

- Temos falado nesta entrevista do consenso que é necessário entre os partidos. O acordo do IRC que foi feito entre o PS...  

- [Interrompendo] Foi uma ajuda.

- E é um princípio para fazer mais nesta área e entre os partidos? Era exigível que isso acontecesse?  

- Muitíssimo mais. À volta dos investimentos públicos do QREN, podia também fazer-se, para dar tempo à revisão constitucional, um trabalho, um acordo entre partidos, princípios fundamentais para a definição do Orçamento. Em vez de inscrever no Orçamento os limites da dívida, os limites do QREN e do IRS, criar alguns princípios que associassem os principais partidos a uma política, para que um partido não venha pôr em causa o que o outro fez. À volta disso, um grande programa de desenvolvimento do investimento, interno e externo. Isto é matéria para um formidável acordo nacional.

- Para sairmos deste programa de ajustamento, em sua opinião, Portugal deve procurar uma saída à irlandesa, ou limpa, como se diz, ou é melhor um programa cautelar que nos dê garantias?  

- Até essa discussão se transformou numa guerra de capoeira, numa guerra política, porque se um diz que quer a saída limpa, o outro diz "não, não, eu quero à irlandesa", "não, não, eu quero à italiana", ou à grega, "não, não, eu quero um programa cautelar". Agora, dentro dos programas cautelares, já há três hipóteses, o cautelar forte, o cautelar fraco, o cautelar assim-assim. Eu não sei o suficiente de finanças internacionais para poder responder. Parece-me que depois destes três anos, em que o facto de haver um apoio externo ao ajustamento serviu para alguma coisa, sair bruscamente só para ser machista, para ser marialva, para dizer "é limpo, é uma saída limpa"... penso que há gente no Governo que quer isso, e depois na oposição também querem. Querem se o Governo quiser o contrário, como é o costume. Parece-me que um ou dois anos com a parede escorada ainda, com um bocadinho de apoio, já não é de canadianas, para voltar ao outro exemplo, mas com uma ajuda, acho que é melhor. É um recado dado ao exterior...

- [interrompendo] Conhece a classe política. Não seria melhor estarmos controlados ainda mais um tempo por alguém de fora, para não fazermos disparates?  

- Controlados, acho que não. Escorados, acho que sim. Devemos ter durante um ano ou dois, sobretudo na União Europeia, não sei se no Fundo Monetário, alguém a quem prestar contas, o Banco Central Europeu e a Comissão, e o Parlamento, para mostrar que somos capazes de tomar conta do assunto. £ uma das maneiras de o fazer era assinar um acordo, mais uma vez - estou obcecado com isso -, um acordo PS-PSD que se chamasse "Acordo de Colaboração e Cooperação Pós-Troika", para dois ou três anos. Com esse acordo, garanto-lhe que metade do assunto cautelar está resolvido.

- Mas se o Presidente da República conseguiu estimular o aparecimento desse acordo, quem é que poderá fazê-lo? Só a absoluta necessidade, um dia?  

- Se for verdade o que diz, é mais uma vez a justificação do meu pessimismo ou do meu ceticismo. Se fosse chefe do PS, tinha-o proposto eu, por exemplo.

- O que é que espera das próximas eleições europeias? Uma vitória do PS?  

- Mais abstenção, mais desinteresse. No caso português, não estou à espera do aparecimento de coisas de extrema-direita, nacionalistas, porque em Portugal não há disso.

- Fenómenos populistas. Não vê nenhuma personagem que possa estimular o seu aparecimento?  

- Não, em Portugal não creio que vá haver disso.

- Não acredita que Marinho e Pinto tenha um resultado fora do normal em Portugal?  

- Não estou à espera de que ele tenha um resultado fora do normal.

- Está à espera de que estas eleições tragam dificuldades para António José Seguro, no PS, ou mais para Pedro Passos Coelho na chefia do Governo?  

- Parece-me que as eleições europeias vão ter, primeiro, resultados negativos, abstenção, desinteresse pelas questões europeias. E depois vão talvez forçar a ideia de que há uma espécie de empate, de travão mútuo, em que o PS não consegue vingar, o Governo, mesmo com coligação, também não consegue vingar, o que é um anúncio de que as eleições legislativas a seguir poderão confirmar essa espécie de empate. E o empate não sei se é boa solução. Ainda não percebi se um empate é um estímulo ao acordo que eu proponho sistematicamente ou se é um travão a esse acordo.  
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(*) - «DN» de 9 de Março de 2014

domingo, 9 de março de 2014

Luz - Barcelona

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Tapas. (2012)

domingo, 2 de março de 2014

Luz - Barcelona

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Saída de uma igreja, numa pequena transversal da Rambla. (2012)

domingo, 23 de fevereiro de 2014

Luz - El Liceu, Barcelona

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El Liceu é o teatro de Ópera de Barcelona, que já aqui vimos outra vez. Este é o momento antes do início do espectáculo. No dia da minha visita, cantavam a “Força do Destino”, com fabulosa encenação. Pena é não se poder, como se sabe e como deve ser, fotografar durante o espectáculo. (2012)

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Luz - Barcelona

Fotografias de António Barreto- APPh

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Sozinho nas docas… (2012)

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Luz - Ainda nas docas de Barcelona

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Mais uma… (2012)

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Luz - Nas docas de Barcelona

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A qualquer hora do dia, há sempre gente por aqui. Muda a idade dos passeantes, conforme o momento. (2012)

domingo, 26 de janeiro de 2014

Luz - Arte nas Ramblas, Barcelona

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Sem palavras… mas com bonecos! (2012)

domingo, 19 de janeiro de 2014

Luz - Lounge do Hotel Palace, Barcelona

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É um antigo, reputado e muito interessante hotel que vem directamente do princípio do século XX e, através de vicissitudes várias, se prepara confortavelmente para o século XXI. (2012)

domingo, 12 de janeiro de 2014

Luz - Barcelona, cruzamento de avenidas

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É o mesmo cruzamento que já revelei em “posts” anteriores. Além de não ter chuva, este tem uns curiosos adornos arbustivos na entrada do hotel. (2012)

domingo, 5 de janeiro de 2014

Luz - Barcelona, Mais um cruzamento de avenidas em dia de chuva.

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Os dias de chuva sempre foram uma tentação dos fotógrafos. Ou, pelo menos, para a fotografia. Há quem tenha energia e, com ou sem protecção, vá por esse mundo a recolher imagens. O tom e a luz de fotografias “chuvosas” são estranhos. E são raras as imagens, dado que a maior parte das pessoas não ousa sair. Entre estas, sem energia e mais comodistas, há umas que tentam substituir a realidade pelo conforto da janela de casa ou do hotel. Foi o meu caso, em Barcelona. (2012).

domingo, 29 de dezembro de 2013

Luz - Docas de Barcelona

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Acostagem de um barco no porto de recreio. (2012).

domingo, 22 de dezembro de 2013

Luz - Local de embarque no porto de recreio de Barcelona

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É um ponto de encontro entre o velho e o novo. Atrás das árvores, começa a grande “Rambla”. À direita, iniciam-se as docas restauradas dos Olímpicos. (2012).

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

“A Identidade Cultural Europeia”, Vasco Graça Moura (*)

TENHO um grande prazer e muita honra em apresentar o livro de Vasco Graça Moura. É um grande pequeno livro, de enorme oportunidade, de indiscutível interesse e de uma evidente erudição. Sublinho este último aspecto: numa altura em que as frases feitas, os lugares-comuns e os clichés têm cada vez mais saída, é reconfortante ver as virtudes da erudição, sentir que uma cultura sólida nos pode ajudar a compreender o mundo em que vivemos e que se nos apresenta, de modo crescente, como um mundo confuso, complexo e incerto. Para já não dizer inseguro. É um pequeno livro sobre um tema difícil e complexo, mas um livro claro, que nos satisfaz um prazer em perigo de extinção: o prazer de saber, de conhecer, de perceber.

O livro “A Identidade Cultural Europeia” é publicado num tempo em que a ela muito se alude, sem que se defina ou sem que se desenhem os seus contornos. Conforme as conveniências, a “Identidade europeia” é a Democracia ou o Estado social, o Cristianismo ou os Direitos do Homem, as Luzes ou o Romantismo. Ou tudo isso. Mas, quando se olha com cuidado, percebe-se que é muito mais, que evolui com o tempo, que é contraditória, que inclui valores universais estimados e reconhecidos, mas também realidades que são o seu contrário. E será esse um dos méritos deste livro: mostrar que a Identidade cultural europeia é um assunto inacabado, um fenómeno em formação e um movimento sem fim.
Percebe-se também o que Vasco Graça Moura nos quer dizer: é difícil ou talvez mesmo impossível definir e estabelecer a Identidade cultural europeia, mas onde ela está, logo se reconhece; quem a vê, dela se apercebe. Noutras palavras, ninguém a define, mas todos a distinguem.
A este propósito, um dos últimos capítulos intitulado “Identidade europeia, auto-reflexão e autoquestionamento” é uma obra-prima, um condensado da evolução de mais de 2000 anos da história europeia, sob o ponto de vista das ideias, dos valores e das artes! É um excelente auxiliar nessa tentativa de distinguir a Identidade europeia, sem a definir.

Em plena crise financeira europeia, que é também económica e política, todos parecem atribuir funções e obrigações à Europa, ou à União Europeia, mas poucos discutem os fundamentos dessas obrigações. Alguns ainda referem a solidariedade, conceito fácil e atraente, mas totalmente deslocado em assuntos internacionais e em relações entre Estados. Estes, para o bem e o mal, têm interesses, não sentimentos. Pode ser que ajudar o outro seja do interesse de um, mas a isso não se chama solidariedade. Pode ser que cuidar da coesão do conjunto seja do interesse de todos e de cada um, mas também a isso não se chama solidariedade. O que é interessante, no entanto, é ver e sentir como, em tempo de crise, se atribuem responsabilidades à Europa e à União. Quer isto dizer que há uma espécie de consenso ou de denominador comum: a Europa tem uma existência, tem interesses e tem responsabilidades. Mas também é interessante ver que essa “espécie de consenso” termina aí, não se reflecte na enumeração de deveres nem na atribuição de responsabilidades.

O ensaio de Vasco Graça Moura vai ajudar-nos a perceber essa realidade. Construído como uma peça musical do género das “variações sobre um tema”, o autor escreve quinze capítulos, como se fossem andamentos, voltando sempre ao tema central, a essa misteriosa, atraente e complexa “Identidade cultural europeia”. E sempre nos deixa a mesma impressão: a Identidade cultural europeia é sólida, permanente, indelével, de ambição universal e de aspiração perpétua, mas difícil de apreender e sobretudo frágil como alicerce de construção política, económica, militar ou mesmo científica.
Vou desobrigar-me de duas tarefas tradicionais das apresentações de livros. Primeiro, não resumo o livro. Não se resume um livro de 90 páginas! Segundo, não apresento o currículo do autor. Todos percebem porquê. Mas não quero deixar de afirmar que o Vasco Graça Moura é certamente um dos mais interessantes e importantes intelectuais da actualidade. Com uma passagem pelo Governo e outra pelo Parlamento Europeu, com a presença activa em grandes empreendimentos e instituições culturais, associou a acção à criação e ao pensamento. É aqui que ele brilha como escritor, poeta, ensaísta, romancista, colunista de opinião na imprensa e tradutor. Permitam-me sublinhar esta última vocação, este último talento. O Vasco deve ser uma das raras pessoas no mundo que traduziu, para a sua língua materna, obras, sobretudo poesia, que é o mais difícil, de pelo menos cinco línguas de origem! Traduzir para um português de grande qualidade, rigor e beleza, textos e poemas de, entre outros, Shakespeare, Dante, Rilke, Lorca e Villon… É obra! Ainda por cima no respeito pelas regras poéticas da métrica e da rima! Não está ao alcance de qualquer! Não está praticamente ao alcance de ninguém! Os prémios internacionais que recebeu por esse formidável trabalho são o sinal do modo como foi reconhecido pela comunidade culta e académica europeia. Com uma consequência interessante: Vasco Graça Moura é uma das mais sérias demonstrações de um facto frequentemente esquecido: traduzir é uma arte e uma técnica que alcançam os patamares da criação.
Repare-se ainda na coincidência, certamente não fruto do acaso: o que o Vasco trouxe para Portugal, o que traduziu e ajudou a difundir foi o património europeu! Shakespeare, Petrarca, Ronsard e tantos outros! Ninguém fez melhor!
 
Temas de conversa

O mito e a realidade.

Um dos grandes paradoxos da Europa reside na comparação da sua reputação de Europa de paz com a sua história de Europa de guerra. Tu próprio, apesar da crença na Europa, não deixas de aludir a esse paradoxo. Europa parece ser uma atalho ou um símbolo de paz, de solidariedade, de direitos do homem e de cultura, mas é de certeza o continente onde houve mais guerras, civis ou internacionais, mais revoluções, mais massacres, mais guerras de religião, mais liquidação de civis em conflitos militares, mais longas ditaduras, mais campos de concentração ou de trabalho…
As páginas do Google são formidáveis! Escrevi simplesmente “lista de guerras e conflitos na Europa”. A resposta veio em menos de um segundo: centenas e centenas de conflitos e guerras alinhadas por século! Esta Europa de ideias e cultura, de liberdade e de igualdade, passou a maior parte da sua história a fazer a guerra! Ainda no século XX, os mortos foram dezenas de milhões, os presos políticos foram milhões, os anos de ditadura foram dezenas, os civis massacrados foram milhões, as cidades bombardeadas foram dezenas… E nem falo das guerras que fixaram nomes horrendos: Guerra dos Trinta Anos, Guerra dos Cem anos… A que acrescento as Grandes revoluções que fizeram milhares de mortos… E mesmo duas Grandes Guerras que começaram europeias e acabaram mundiais!
A guerra parece ser uma identidade europeia! A guerra é uma vocação europeia!
Curiosamente, não foram guerras contra terceiros, como talvez em Lepanto, em Viena ou no Salado… Foram guerras entre europeus, como em Sadova, Waterloo ou Verdun… É curioso ver como a guerra é um dos factores de identidade da Europa! E ver como hoje os Europeus fogem à responsabilidade militar, à despesa com a defesa e se entregam facilmente à protecção americana!
As guerras entre Europeus foram sempre mais mortíferas do que contra terceiros!
 Até a religião deu, na Europa, guerra! O Cristianismo é seguramente uma reputação europeia. É certo que o Cristianismo não nasceu na Europa, mas foi aqui que ele vingou. Pois bem, na Europa, até a religião deu guerra! Não para salvar o Cristianismo dos seus inimigos, mas para ajustar contas entre Cristãos! Em guerras que foram das mais mortíferas da sua história!
 
O paradoxo da cultura e do património.

Na Europa, o mais comum, o mais perene e o mais conhecido é a cultura! Mas a União não se faz com cultura!
A União, aliás, dedica muito pouco tempo, dinheiro e energia à cultura.
Como é possível a União repousar sobretudo no que a separa, as culturas nacionais?
Há momentos, neste livro, em que se pensa que a cultura, as artes, as ideias, a identidade e o património são indeléveis e indestrutíveis.
Mas também é sugerido que os Estados, as políticas, as religiões e sobretudo a economia podem tudo destruir… Menos o património e o legado! Será assim?
Mas também há no teu livro sinais de alerta em sentido contrário. Sugeres que a economia, as finanças, os mercados podem destruir o património, deixá-lo decair e desaparecer…

Há alguns anos, um filme que ganhou a Palma de Ouro em Cannes, chamava-se, em francês, “Entre les murs”; em português, “A turma”: e em inglês, “Tha class”. Esse filme retratava a vida quotidiana de uma turma, algures no 20º arrondissement de Paris. Os conflitos, a indisciplina, as relações interculturais e interétnicas são alguns dos temas principais. Mas o mais impressionante, o mais chocante deste excelente filme é a sua tese central: já não é possível haver um cânone comum, um património cultural, um legado familiar a todos. As crianças asiáticas, africanas, europeias e árabes pouco tinham de comum: referências culturais, autores, arte… Nada! A não ser futebol e música pop…
Que lição retirar desta fábula? Que a Europa do futuro terá, como património, apenas as pedras? Saint Denis, Alcobaça e santa Maria del Fiore… Nada mais?

O paradoxo dos contributos negativos.

Para a Europa, contribuem sobretudo as realidades nacionais, contrárias ao espírito comum. Segundo o lugar-comum politicamente correcto, a diversidade é a maior riqueza da Europa, da identidade europeia! O paradoxo é evidente!
A Europa tem ou não realidades próprias ou sobretudo realidades nacionais? A Europa é uma soma de diversidades nacionais? Como é possível que tanta diversidade faça uma unidade?
Entre os valores reconhecidos, a democracia parece ser parte integrante do ideal europeu! Mas a verdade é que, só no século XX, um grande número de países europeus conhece quase tantos anos de ditadura como de democracia!
A diversidade foi a maior fonte de guerras e lutas, de conflitos e animosidade! Quer isto dizer que a identidade europeia foi também feita pelos seus contrários! Fenómenos internacionais ou transversais como o Cristianismo, o Renascimento ou as Luzes fizeram a Europa tanto cromo as histórias individuais de cada país. E fenómenos que marcaram negativamente a história, como certas formas de racismo, de perseguição religiosa e de despotismo político acabaram por contribuir para a Identidade europeia, por eles próprios mas também pelas lutas e reacções que desencadearam. A Inquisição, o Colonialismo, a Escravatura, o Terror, o Fascismo ou o Comunismo fazem parte da Identidade europeia. A Europa cresceu na luta contra eles!
De tudo se faz uma identidade. Nós temos certamente a tendência a privilegiar o lado bom, os aspectos positivos: o Renascimento, as Luzes, os Direitos do Homem… Mas o menos bom e o negativo não farão parte da identidade? O imperialismo, a escravatura, certas formas de intolerância e a exploração não farão parte dessa identidade? Que pensarão disso os Africanos, os Índios, os Árabes e os Asiáticos?
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(*) - Ensaios da Fundação Francisco Manuel dos Santos
Lisboa, Dezembro de 2013

domingo, 15 de dezembro de 2013

Luz - À beira mar, nas docas de Barcelona


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Todo o arranjo urbanístico feito nesta área da cidade, aproveitando a realização dos Jogos Olímpicos de 1992, parece ter sido um êxito, pelo menos do ponto de vista comercial e do lazer. Está sempre povoado de milhares de pessoas à procura de sol, bares, restaurantes e divertimentos. Não se sabe como será dentro de uma ou duas décadas, com os eternos e reais problemas da articulação entre serviços, turismo, trabalho, lazer, habitação… Mas, para já, parece ser conseguido. Na Europa, há muitos casos de insucesso de tentativas de refundação, a partir do nada ou de ruínas, de grandes sectores ou áreas de cidades. A conferir dentro de vinte anos… (2012).

domingo, 8 de dezembro de 2013

Luz - Uma avenida de Barcelona

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Neste caso, a Gran Via de las Corts Catalanes. (2012).

domingo, 1 de dezembro de 2013

Luz - Uma rua antiga na Madrid dos Áustrias

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O centro histórico de Madrid, que não é muito grande, nem muito antigo, está, em geral, impecavelmente conservado, sem nunca parecer museu ou presépio, pouco decadente, raramente devoluto, nunca abandonado, limpo, vivo… As imagens mais simples e as ruas mais singelas são prova do que digo. É, aliás, nos locais menos monumentais, menos turísticos e menos famosos que se nota o cuidado e a atenção prestados às cidades históricas. (2012).

domingo, 24 de novembro de 2013

Luz - Um antigo mercado transformado em “Comes e Bebes” e “Gourmet”, Madrid

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Era um mercado do século XIX, em ferro, vidro, pedra e tijolo. Foi transformado e adaptado. Continua a ser mercado de produtos vários, a que se acrescentaram bares de toda a espécie, pequenos restaurantes rápidos, cafés, geladarias, pastelarias, etc. Lá encontrei, com surpresa, pastéis de nata ou de Belém, ameixas de Elvas, vinho do Porto, figos do Algarve, frutos secos e mais uma ou duas iguarias portuguesas. (2012).

domingo, 17 de novembro de 2013

Luz - Bares nas arcadas da Plaza Mayor, Madrid.

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A toda a volta desta magnífica praça, é possível encontrar bares interessantes. Em certos momentos do dia e em certos meses do ano, quando os passeantes e turistas não são às revoadas, esta praça é encantadora, discretamente majestática e ligeiramente austera. Mas, mesmo quando está cheia de gente, de vendedores ambulantes e artistas de toda a espécie, respira-se ali um ar de simpatia. Quem sabe se resulta da boa mistura da Áustria e da Espanha (2012).

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Uma reflexão sobre a Reforma do Estado (*)


Por que razão o tema da Reforma do Estado é actual?



A primeira razão parece quase circunstancial: a crise financeira dos Estados, a dívida pública e a crise das dívidas soberanas fizeram com que seja necessário repensar e reorganizar a despesa e a receita do Estado, numa altura em que já não se pode, em Portugal como noutros países, continuar a simplesmente aumentar os impostos e recorrer ao crédito. Novas soluções têm de ser encontradas. E logo vieram ao espírito várias hipóteses: diminuir a despesa, cortar no investimento e nas prestações sociais, diminuir a dimensão do Estado, baixar os desperdícios, etc. Em poucas palavras, diminuir e organizar melhor o Estado. Isso é uma coisa. Reformar o Estado é outra. Falta saber se são possíveis ao mesmo tempo.



A segunda razão é porque se trata do principal objectivo da luta política contemporânea. Uma nova forma de luta de classes. Não é só luta de classes, nem é toda a luta de classes. Mas é boa parte. A traço grosso, temos, de um lado, os que querem um Estado forte, activo, interveniente, tão vasto ou mais do que hoje, motor de desenvolvimento, dirigente da nação e da economia; e, do outro lado, os que querem um Estado mais pequeno ou muito mais pequeno do que hoje, parceiro da sociedade civil, regulador, disciplinador, não interveniente, ligeiro e eventualmente fraco. Em quase todos os Estados desenvolvidos, mas também noutros em vias de desenvolvimento ou emergentes, encontramos o mesmo tipo de divisão e de confronto. É verdade que, em parte, mas apenas em parte, esta divisão recorta a antiga separação entre direita e esquerda. Mas não se trata apenas de uma cópia ou de uma modernização. Na verdade, ao longo das últimas décadas, é frequente encontrar forças de esquerda liberais, tal como movimentos de direita a favor do Estado. Bastaria quase olhar só para Portugal, onde já tivemos esquerdas dirigistas e intervencionistas, mas também esquerdas liberais. Como já tivemos direitas dirigistas e intervencionistas, tanto quanto as tivemos defensoras da sociedade civil. A nossa mais longa tradição é, aliás, a de uma direita amiga do Estado.



A terceira razão resulta do facto de pagar, gastar, distribuir e investir serem, nos tempos de hoje, as principais tarefas do Estado e os principais argumentos políticos e eleitorais. Os orçamentos de Estado, que não cessam de aumentar desde há várias décadas, traduzem cada vez mais essa prioridade. O Estado investe ou despende sempre mais na Saúde, na Educação, na Segurança social e nas obras e serviços públicos, sem falar nas outras funções de Estado e de Soberania, além da despesa crescente com a sua própria organização e seus funcionários. Sem poder gastar mais e distribuir melhor, nenhum poder político resiste ou atravessa vitoriosamente as eleições. Todos os Estados procuram, com mais ou menos relevo e significado, diminuir o fardo financeiro, a fim de poder melhor determinar a sua despesa. Mas a verdade é que a maior parte dos Estados desenvolvidos modernos chegaram ao ponto crítico de não poderem mais continuar a gastar, sob pena de abrirem crises sérias de endividamento ou mesmo de bancarrota. Alguns Estados viram e acudiram ao fenómeno, talvez a tempo, como certos Estados escandinavos, outros não viram ou não souberam acudir a tempo, como a Grécia, Portugal e a Espanha, por exemplo.



Mas há outros motivos. Actuais também, mas já com algumas décadas.



A globalização pôs o Estado em crise. Isto é, criou novas realidades económicas e financeiras e exigiu adaptações e mudanças. Ora, os Estados dos países desenvolvidos não estavam preparados e especialmente os Estados europeus contemporâneos nem sempre souberam reagir e responder. O Estado português muito menos. A economia mundial, o livre comércio e a desregulamentação de muitas actividades económicas e financeiras internacionais deixaram os Estados desarmados e impotentes. Só os Estados mais poderosos (nomeadamente os Estados Unidos, a Alemanha e a China…) conseguiram pôr a seu proveito as forças libertadas pela globalização, enquanto a maioria sofre as suas consequências.



A consolidação e o desenvolvimento da União europeia aprofundaram a crise do Estado nacional. A União revelou uma dificuldade surpreendente em se adaptar. Dai resultou a sua desorientação, ficando aquém da estrutura pré federal que alguns desejam, mas transformando os Estados nacionais numa espécie de parceiros locais de uma frágil estrutura internacional que ultrapassa os Estados, sobretudo os de pequena e média dimensão e de pouca força económica. Note-se bem: ultrapassa-os, sem lhes conferir solidez ou estabilidade. A consequência deste processo é evidente: a reforma do Estado, em conjugação com a da União, tornou-se necessária.



Chego assim à segunda parte da minha exposição.




Por que razões a Reforma do Estado é, em Portugal, necessária há várias décadas?




Para Portugal, todos os motivos acima explicam a contemporaneidade e a actualidade do tema, mas há outros motivos que nos dizem respeito. Há outras causas específicas que explicam a evolução do Estado português, os seus problemas e a necessidade crescente da sua reforma.



Após o 25 de Abril, o Estado português foi reorganizado de modo improvisado. À pressa, sem ideia nem objectivo. A democracia política instalou-se em cima de estruturas corporativas obsoletas, próprias de outras idades e de outros modos de governo. As estruturas democráticas combinaram com o anterior regime corporativo a que acrescentaram as liberdades, tendo também concertado com formas de governo e de administração forjadas precipitadamente durante a revolução de 1974/75. O resultado foi uma obra compósita, sem coerência.



O crescimento do Estado de protecção social foi muito acelerado depois de 1974 e fez aumentar a dimensão, o volume, a força, a decisão e o peso do Estado e da Administração Pública. Mesmo depois da reprivatização da economia e das empresas, iniciada nos anos 90 e prosseguida até hoje pelos dois maiores partidos, as dimensões do Estado administrativo não foram reduzidas. Dos menos de 200.000 funcionários dos anos 1960, chegámos aos 600.000 a 700.000 da última década. Esta dimensão não é necessariamente exagerada, quando comparada com os nossos parceiros europeus. Acontece que se tratou de um crescimento orgânico e demográfico, sem alteração consistente das formas de organização e das missões do Estado, tanto central como local. Por outro lado, a comparação com outros países desenvolvidos pode ser falaciosa. Na verdade, a semelhança de números esconde diferenças radicais no produto nacional, na organização e na produtividade.



A Constituição e as principais leis de base não criaram um Estado administrativo com novo espírito e critério, nem estabeleceram um novo modelo de organização. Algumas das grandes polémicas, controvérsias, ou dilemas foram sempre sendo adiados: o “Centro versus Região” e “Estado central versus Autarquia”, por exemplo, nunca encontraram verdadeiramente solução, nunca houve decisão claramente maioritária ou consensual. Donde resulta que a distribuição de poderes permaneceu instável e sujeita a evoluções de circunstância. Do mesmo modo, as responsabilidades dos titulares dos órgãos políticos nacionais e locais permaneceram incertas. Outro exemplo ainda de questão eternamente adiada é o do regime de acumulação de funções públicas e privadas dos agentes da Administração, cuja indefinição é fonte permanente de distorções. Certos aspectos fundamentais evoluíram, é certo, mas só na medida em que tal interessou circunstancialmente. Estão nesta situação, por exemplo: as capacidades eleitorais locais, o regime de referendo, os direitos de propriedade e de iniciativa privada, o âmbito do sector público empresarial, a autonomia das instituições públicas e os poderes da tutela de Estado sobre instituições privadas.



A verdade é que não é possível encetar com êxito um processo de reforma do Estado sem começar ou passar pela revisão da Constituição. O que torna tudo mais difícil. A Constituição e as leis de bases traçaram minuciosamente um sistema de defesas contra o autoritarismo, o caciquismo, o cesarismo, os vulgarmente chamados regimes fascistas e comunistas, o populismo de cariz militar e outros… A natureza equivoca e ambígua do sistema semi-presidencial é o melhor retrato desse sofisticado sistema de defesa, brilhante na construção, uma verdadeira obra-prima, mas que é fraco de carácter e defensivo na energia. Algumas das querelas antigas e que hoje são de novo virulentas, como entre os órgãos de soberania (entre o Parlamento, o Presidente da República e o Governo), ou entre os órgãos de soberania e os tribunais (com relevo para o Tribunal Constitucional), são o resultado directo e permanente da natureza híbrida do regime, do sistema constitucional e da natureza do Estado.



Toda a construção ou todo o desenvolvimento do Estado, desde os anos 1970, foram feitos nas circunstâncias acima descritas, com especial relevo para uma instituição: os partidos políticos. O fio condutor, os obreiros e os protagonistas do desenvolvimento do Estado e da Administração Pública, desde 1974, foram os partidos políticos. Foram subalternizadas outras instituições e entidades, como sejam o Parlamento, o Presidente da República, o Governo, as Regiões, as Autarquias, os Tribunais, as Forças Armadas, as empresas privadas, as universidades e outras.



A sociedade e a economia mudaram profundamente durante as últimas quatro a cinco décadas. A demografia alterou-se e o panorama populacional do país modificou-se drasticamente. A administração autárquica, local e regional, foi concebida para um país e uma sociedade que já não existem. As grandes metrópoles urbanas estão cada vez mais complexas e quase ingovernáveis, enquanto o interior despovoado continua a ser regido por sistemas desadequados. Mudaram as actividades, modificaram-se as empresas, deslocaram-se as pessoas, transformaram-se os recursos, alteraram-se drasticamente as vias de comunicação… mas as estruturas administrativas mantiveram-se quase inalteradas.



Recentemente, a crise financeira do Estado (e da sociedade) e o endividamento externo fizeram com que o Estado português ficasse refém dos seus credores, dos parceiros europeus mais poderosos e dos grandes interesses… Não é a melhor altura para proceder à Reforma do Estado. Aliás, a correcção conjuntural das finanças do Estado, apesar de indispensável, não pode ser confundida com a reforma estrutural do Estado. Esta pode e deve ser preparada, debatida e reflectida, mas qualquer urgência é sinal de fraqueza e de dependência! Em momentos de expansão económica e de estabilidade social e política, as querelas constitucionais esbatem-se e as deformações do Estado são aparentemente ultrapassadas pela euforia económica e social. Mas, em momentos de crise, as deficiências constitucionais avultam com carácter de urgência. Quando a crise é de endividamento internacional, de ameaça de bancarrota e de perda de autonomia de decisão, o “verniz estala” mais facilmente. Ora, é nesses momentos, quando são mais precisas, que a revisão da Constituição e a reforma do Estado são mais difíceis. Não só pela insuficiência de meios, mas também pela crispação entre partidos políticos. Os regimes de resgate financeiro e os deveres que lhes estão associados fizeram com que os “cortes” e as “supressões”, assim como as mudanças nos regimes laborais, se transformassem em substitutos para a reforma do Estado. Tal não deveria acontecer. As questões laborais não se devem sobrepor aos objectivos fundamentais da reforma de Estado.



Paradoxalmente, em resultado de toda esta evolução brevemente descrita, a reforma do Estado, aos olhos de muitas pessoas, tornou-se urgente. O Estado está fraco de mais, pesado de mais, vagaroso de mais, ineficiente de mais, capturado de mais por interesses particulares e dependente de mais de poderes estrangeiros e internacionais. Mas urgente não quer dizer de emergência. Urgente implica uma necessidade inadiável, mas a sua satisfação pode ser feita gradualmente, ao longo do tempo, com uma definição clara de objectivos, com uma estratégia política e com um calendário razoável. A pressa seria desaconselhada, sobretudo porque o Estado se encontra débil e dependente.



Esta debilidade ou esta crise do Estado português é agravada por outros fenómenos. O primado dos partidos políticos permitiu que a captura do Estado pelos interesses privados fosse facilitada. É através dos partidos políticos que grupos económicos, empresas, sindicatos, associações privadas, profissões e outros interesses retêm e possuem a capacidade política de regulação e legislação, assim como os favores económicos. É usual pensar que o “poder político”, em democracia, deve primar sobre o “poder económico”. Esta quase verdade consensual serve para justificar a acção livre dos agentes políticos e, por essa via, o privilégio acordado aos partidos políticos e a consequente submissão dos outros interesses sociais. Acontece que é em parte esse primado da política que serve a captura do Estado por interesses privados. Repito: é por intermédio dos partidos que os interesses privados detêm privilégios e poderes. Daqui não concluo que é necessário ou sequer aconselhável afastar os partidos. Não. Necessário é moderá-los. O que só pode ser feito com instituições democráticas sólidas. Evidentemente, não há democracia sem partidos políticos. Mas também não há democracia só com partidos como únicos agentes políticos.



A massificação da política, da economia e da cultura criou novos fenómenos sociais, culturais e políticos aos quais é necessário prestar atenção com olhar crítico. São os casos, por exemplo, das sondagens de opinião permanentes e da comunicação imediata em tempo real, que destruíram a noção de mandato democrático. Ou da fabricação de realidades virtuais que leva o debate público para fora das instituições políticas. Ou ainda da mercantilização do voto e dos processos eleitorais que transformou esses processos políticos em espectáculo encenado. Todos estes fenómenos destruíram uma boa parte do prestígio da profissão, da carreira e da função política, geralmente coincidente e adequada às estruturas do Estado nacional. A actividade política perdeu dignidade e reputação. O Estado hipotecado aos partidos e por eles detido é fonte de desprestígio da actividade política.



Quase quatro décadas de democracia, acrescentadas a quase cinco de autoritarismo, criaram um universo de contacto entre a vida privada e a pública e entre os interesses económicos e a função política. Por várias razões, não se procedeu a um desenho de fronteiras nítidas, nem se criaram mecanismos eficientes de avaliação e julgamento. Mau grado a aparência de força e autonomia, o Estado português é presa de interesses e forças sociais. Tanto partidos políticos, como grandes corpos profissionais ou grupos económicos. Mais do que a ilegalidade e a promiscuidade sua companheira, são a confusão legal e a acumulação legítima de funções e de interesses privados e públicos que distorcem e dominam a vida pública portuguesa.



Assim chego à terceira parte da minha exposição. Não tenho a veleidade de propor um programa completo, um roteiro ou um plano. Apenas me limito a uns pontos que desejo sublinhar.



Alguns contributos para a discussão pública sobre a Reforma do Estado em Portugal.




Convém nunca esquecer que se trata de um longo processo aberto à sociedade. Pode demorar anos e não se confunde com um calendário eleitoral. Nem com pagamento de dívidas ou resgate financeiro.



Reformar o Estado em democracia exige um plano, uma estratégia, um condutor e um consenso alargado. Como se pode imaginar, a dificuldade reside na necessidade de um consenso alargado (a não confundir com unanimidade) e na indispensabilidade de um condutor, de um dirigente ou de um piloto (pessoa, partido ou instituição). A direcção permite a eficácia, a unidade de orientação e a consistência. O consenso alargado permite, além das liberdades e da pluralidade, a persistência e a duração no tempo. De outro modo, teremos reformas aparentes e efémeras, logo seguidas de novas reformas levadas a cabo por outros protagonistas políticos, nomeadamente os partidos.



Por outro lado, como já disse, em tempos de crise financeira, não é aconselhável esperar demasiado de um esforço de reforma do Estado. Criar ou reformar um Estado sob ameaça de bancarrota e sob a pressão dos credores internacionais é tão errado e tão perigoso quanto criar ou reformar um Estado à custa de dívida e com base em benesses demagógicas. São necessários meios, que faltam. É precisa tranquilidade política, inexistente. É indispensável independência, ausente. É imprescindível a sinceridade política, em falha absoluta. Nenhum partido da oposição está disponível para se associar aos partidos da maioria, arcando também com as responsabilidades da situação actual. Nenhum partido do governo está preparado para ceder a sua posição, partilhando-a com outros. Nas actuais condições de excepcional crispação e de degradação das relações políticas e pessoais entre dirigentes partidários, nada parece favorecer a preparação dos consensos alargados necessários. Reformar em profundidade não parece possível actualmente. Preparar, estudar, debater, negociar… sim! Ora, todos podem e devem tomar iniciativas de reflexão e discussão: Parlamento, Governo, Presidente da República, Forças Armadas, partidos políticos, instituições, magistratura, universidades, profissões, associações e sindicatos.



Importa, por outro lado, considerar que a revisão profunda da Constituição é parte central da reforma. Não é possível imaginar que a reforma do Estado possa dispensar a revisão da Constituição. Os poderes dos órgãos de soberania, o sistema eleitoral, a relação entre Estado central e autarquia, a concepção da Administração Pública, o conceito de funcionário público, o desenho dos grandes serviços públicos de Saúde, Educação e Segurança social, a organização da Justiça e os direitos e os deveres das instituições e das empresas privadas são aspectos essenciais da reforma do Estado, mas a sua definição actual, que importa rever e alterar, reside na Constituição.



O Parlamento, o Governo e o Presidente da República, assim como inúmeras instituições privadas, poderiam criar grupos de reflexão e debate. Desde que alguém, Presidente da República, Presidente da Assembleia da República ou Primeiro-ministro, diga que vale a pena, que não é inútil. É a única maneira de evitar que a revisão da Constituição e a reforma do Estado se transformem em armadilhas. Que é o que está a acontecer!



Quanto aos conteúdos das reformas e da revisão, gostaria de distinguir alguns.



Considero útil a revisão profunda do sistema eleitoral, de modo a que as eleições não sejam utilizadas exclusivamente pelos partidos políticos e que os eleitos, partidários ou não, sejam pessoalmente responsáveis. Não se trata de pretender que um Parlamento feito de independentes seja mais eficiente e mais responsável que um Parlamento feito de grupos partidários. O mais importante é que haja mecanismos de moderação do poder inquestionável dos partidos e das suas direcções. A possibilidade de candidaturas independentes, locais ou de outra natureza, é sobretudo fértil, não porque se substitui aos partidos, mas porque os ameaça e os obriga a superiores critérios de honestidade e responsabilidade, assim como é a melhor maneira de abrir um partido à sociedade.



Outra mudança que se me afigura necessária é a liquidação dos restos do sistema de “confiança política” na Administração Pública, um dos graves factores do mau governo e de captura partidária. Com as devidas excepções, fundamentadas e em número reduzido, os cargos da Administração, particularmente os dirigentes da alta administração, deveriam todos ser exclusivamente preenchidos segundo critérios técnicos, científicos, profissionais, de carreira, de mérito pessoal, de dedicação e merecimento, em detrimento dos resquícios da “confiança política” ainda em vigor. O anterior sistema, aprovado pela unanimidade dos partidos, estabelecia que os mandatos dos Directores gerias e equiparadas cessava com as eleições e a tomada de posse do novo governo. Quer isto dizer, politizava e partidarizava legalmente a Administração Pública. Esta prática, absolutamente legal, foi um autêntico veneno durante décadas. O actual governo mudou o sistema, e bem, dando por terminada a “confiança política” plena e criando concursos, mas infelizmente admitindo ainda a escolha, pelo ministro, entre vários seleccionados através de concurso. Foi um progresso, mas evitou-se o melhor.

A este propósito, outra mudança se revela importante: é a velha questão da acumulação das funções privadas e públicas por parte dos agentes do Estado, nomeadamente na Saúde, na Educação, na Consultoria, nas Obras públicas, na peritagem financeira, no contencioso e no apoio jurídico… Apesar das regras existentes, mais complacentes do que severas, a acumulação é muito frequente e quase sempre legal, por via de regimes de excepção que se tornam gerais. Também por isso se torna imprescindível proceder a uma revisão profunda das funções de justiça, fiscalização, avaliação, regulação e prestação de contas, as mais frágeis e as mais críticas de todo o sistema político português.



Entre outras consequências dos novos métodos e dos novos princípios de organização da Administração Pública, avulta a da possibilidade de criar e desenvolver a capacidade científica e técnica do Estado que lhe permita estudar, avaliar, escolher e decidir com mais competência, mais isenção e menor intervenção dos interesses externos ou ocultos, sejam eles partidários ou de qualquer outro tipo. O recurso crescente do Estado a entidades exteriores à Administração (técnicas, cientificas, de consulta económica, de assessoria jurídica, etc.) parece ter tido mais inconvenientes (dependência, interesses particulares, submissão política…) do que vantagens. A verdade é que, hoje, parece termos diante de nós um Estado decapitado, ao qual foi retirada grande parte da competência técnica e científica. O recurso sistemático a empresas nacionais ou multinacionais de estudos, consultoria, aconselhamento, gestão, apoio jurídico, engenharia financeira e tantas outras empobrece o Estado, diminui a isenção das autoridades públicas, oculta os procedimentos e não assegura a independência e o rigor. É cada vez mais evidente que todas essas instituições demonstram e provam o que se lhes pede. A tal ponto que as mesmas entidades conseguem fazer estudos contraditórios.



Última observação: evidentemente que a reforma do Estado não dispensa, antes exige, a definição das novas fronteiras dos direitos e deveres dos cidadãos, das empresas, das instituições, das associações, das autarquias e do Estado, assim como o estabelecimento da nova organização administrativa e territorial do Estado, com a consequente revisão profunda dos sistemas ditos de subsidiariedade na Administração pública. Mas este objectivo parece poder ser aceite por todos, embora cada um tenha ideias diferentes sobre o seu conteúdo.



Para terminar. A reforma do Estado é obra de uma geração. Deveria ser gradual, reflectida e comum a uma parte importante das forças políticas, sociais e culturais. Não deveria ser arma de arremesso, nem emboscada, hoje eventualidades prováveis. Tudo milita, actualmente, para que essa obra não seja cumprida. A começar pela pressa de uns e a acabar na recusa de outros. Se ao menos os titulares dos órgãos de soberania soubessem reflectir e preparar o futuro! Se ao menos os dirigentes políticos quisessem levar a cabo tal empreendimento sem pensar apenas no orgulho narcisista! Se ao menos os partidos fossem capazes de fazer tantos sacrifícios quanto exigem deste nosso pobre povo!

(*) Instituto de Defesa Nacional
Lisboa, 6 de Novembro de 2013

domingo, 3 de novembro de 2013

Luz - Barcelona, Mare Magnum

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Nas docas dos Olímpicos. Toda esta região terá sido reconstruída, urbanizada e arranjada com os Jogos Olímpicos em vista. Um pouco como o nosso Parque das Nações, a pensar na EXPO. Ao contrário da área de Sevilha, onde se criou uma zona semelhante, preparada para a Exposição universal e que hoje parece estar abandonada ou degradada… esta parte de Barcelona parece atrair milhares de pessoas, há bares e restaurantes por todo o lado, locais de divertimento e lazer, etc. Não tenho a certeza que seja um longo, próspero e interessante futuro, mas lá se vai aguentando. Pelo menos, não parece lá haver pavilhões como os nossos, um que virou casino, outro, o de Portugal, que está abandonado e em início de degradação… (2012)

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Entrevista ao «i» de 25 Out 13

NOTA (CMR): Dado não ter sido possível afixar aqui a entrevista completa, a mesma será enviada, em formato PDF (tamanho 4 Mega), a quem o solicitar.
Bastará mandar um e-mail para medina.ribeiro@gmail.com indicando, em assunto, entrevista ao 'i'.

domingo, 27 de outubro de 2013

Luz - Madrid, Plaza Mayor, Jogo de luz e sombra

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Esta bela praça virá do século XVII, mas realmente do XVIII. Vem do tempo do Habsburgos. Está situada na Madrid de los Austrias, como eles lhe chamam. Apesar da confusão, das hordas de turistas, dos vendedores de tudo e nada, dos carteiristas e dos grupos de escolas, é um local encantador, bonito e muito equilibrado. Não fora o barulho e o rebuliço, seria um local formidável para o descanso, a leitura, a conversa, o namoro, a reflexão, a admiração do belo… (2012)

domingo, 20 de outubro de 2013

Luz - Barcelona, passagem de peões…

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Barcelona, passagem de peões… (2012)

domingo, 13 de outubro de 2013

Luz - Barcelona, graffiti

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Barcelona, graffiti. (2012)

domingo, 6 de outubro de 2013

Luz - Barcelona, cruzamento em dia de chuva.

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Barcelona, cruzamento em dia de chuva.(2012)