sábado, 27 de dezembro de 2025

Grande Angular - O murro na mesa de André Ventura

 Na Europa, nas últimas seis ou sete décadas, há ou já houve dezenas de André Venturas. Uns não passaram da cepa torta. Outros foram fugaz faísca ou breve relâmpago. Poucos, muito poucos chegaram a um patamar de existência consistente. Talvez nenhum tenha vencido ou conseguido pesar decisivamente na vida pública dos seus países. Ou antes: pesar, pesaram, mas nenhum marcou e definiu a vida do seu país. Veremos onde chega o “nosso” Ventura e seu Chega. Será uma versão folclórica dessa experiência? Ou fonte de nova política e de novos valores? Ficar-se-á pela caricatura ou chegará a ser alguém? Ele é inteligente e bom actor. Mas os outros também eram.

 

O aparecimento simultâneo, em tantos países, destes vociferantes tem origens semelhantes e razão comum. São sempre personagens que interpretam, da mesma maneira, o mal-estar púbico. Só que, às vezes, muitas vezes, a democracia e a liberdade têm remédio. Ou então o mal-estar não é suficiente e o artista não é bom. As ideias, os gestos e o élan destes personagens ou porta-vozes são simples. O que está não presta. Há muitas coisas que não se percebem. Há sempre gato escondido. Os políticos governam-se e não governam o país. Quem manda mente e rouba. Na verdade, em Portugal e em quase toda a Europa, assim como noutros paradeiros, isto é, nos países democráticos, o mal-estar é elevado. Os defeitos das democracias são muitas vezes comuns. A incompetência dos dirigentes democratas é partilhada e tem origem parecida. As falhas dos sistemas democráticos são iguais ou semelhantes. Por isso, as vozes de Ventura e seus semelhantes são qualquer coisa mais do que palavras ao vento.

 

Onde Ventura acerta, tal como tantos outros, é na percepção das deficiências e das crises do mundo democrático. Visíveis e sentidas em Portugal e na Espanha, nos Estados Unidos ou na Grã-Bretanha, na Grécia ou na Alemanha. Quer isto dizer que as causas do aparecimento dos populistas e das trombetas do protesto são idênticas e muito parecidas em países democráticos. A enumeração pode ser longa. A esclerose dos interesses estabelecidos. A satisfação dos instalados, sejam eles da situação ou da oposição. O contentamento dos favorecidos e o azedume ou a raiva dos esquecidos. A desigualdade social quase promovida a benefício. A ilimitada virtude da riqueza pessoal e a exibição pornográfica da fortuna. O desprezo pelos pobres. A ignorância dos problemas das imigrações. A exploração desenfreada dos trabalhadores ilegais. A cedência das nações perante o cosmopolitismo. A luta entre os mitos da supremacia do privado e do primado do público. O recurso crescente ao lugar-comum, ao cliché e à banalidade, com esvaziamento cultural e moral do discurso político. Poderíamos prosseguir nesta lista. Certo é que a sua conjugação no tempo e nos espaços das democracias tem sido uma ameaça feroz para as liberdades. A ascensão dos Estados autoritários e das ditaduras em África, na Ásia, no Próximo-Oriente, na Rússia ou na China acrescenta e confirma a crise das democracias. Os profissionais do protesto, os populistas e os demagogos do mundo democrático têm aqui terreno fértil.

 

O tom e o teor da expressão dos demagogos são iguais ou semelhantes nos países democráticos. O vocabulário político de André Ventura é reduzido, mas consistente, como convém. “Todos bandidos”. “Trafulhas”. “Uma pouca vergonha”. São algumas das expressões mais usadas e que, pretende ele, definem os tempos que vivemos. Não há problema que não seja por causa dos “ladrões” e dos “corruptos”. Por causa dos “vigaristas”, não há decisão justa e patriótica que consiga vingar. Por isso, há que recorrer aos grandes meios, às soluções radicais. À democracia enquanto ela for útil e dê votos ao protesto. A outras soluções quando a democracia não for suficiente. 

 

O mais interessante da retórica recente de André Ventura é “o murro na mesa”. Convencido de que o gesto, a expressão e a atitude são eficazes, utiliza aquele murro com frequência. Constituição e sua revisão? Murro na mesa! Declínio dos sistemas de saúde e de educação? Murro na mesa! Imigrantes e nacionalidade? Murro na mesa! Corrupção e roubalheira? Murro na mesa! Como ninguém lhe pergunta o que é isso de murro na mesa, o autor fica satisfeito com a expressão e feliz com os efeitos produzidos. Não necessita estudar, nem aprender. Não é preciso dialogar, nem negociar. Escusa perder tempo a formular uma política, encontrar meios, definir estratégias e objectivos e preparar decisões. Depois se verá. Para já, um murro na mesa alegra os convertidos, atrai os inocentes e convence quem não sabe. Um murro na mesa resolve os problemas dos atrasos nas filas de espera, dos partos em ambulâncias, dos imigrantes ilegais, da criminalidade, da droga, dos subsídios indevidos e da aldrabice na segurança social. Até resolverá os impasses dos governos e as dificuldades de revisão constitucional.

 

Não se pense que esta é uma característica de alguém que é incompetente e preguiçoso. Não. O murro na mesa de André Ventura é concebido para isso mesmo: lançar a desconfiança sobre todos os outros; abrir as portas a qualquer solução que se venha a revelar necessária; fazer depender de si todas as decisões e todos os gestos políticos. Mais ainda: preparar a opinião pública para todos os passos futuros, democráticos ou não, autoritários ou não, legais ou não. Constituição, Parlamento, Presidência da República, Tribunais, Administração Pública e códigos legais ficarão dependentes da sua vontade, dos seus interesses e do murro na mesa.

 

Nos países em que os sistemas de liberdade conseguem resposta inteligente e solidária, eficiente e com identidade, os demagogos têm encontrado obstáculos sérios e não vingam. Noutros casos, como em Portugal, não sabemos ainda. Nem sabemos se o murro na mesa dá cabo da liberdade ou se limita a partir a mesa. Ou a quebrar a mão de Ventura.

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Público, 27.12.2025

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