sábado, 22 de novembro de 2025

Grande Angular - E a Justiça, senhores candidatos, a Justiça?

 Justiça, isto é, os Tribunais e restantes órgãos e instituições judiciais fazem parte do poder político, são soberanos e independentes. A Constituição, suprema convenção da República, confere-lhes especial capítulo e dignidade. Como autónomos e soberanos que são, não estão submetidos a nenhuma instituição, a nenhum poder. O seu principal limite é o da lei. Que têm de cumprir e fazer cumprir. Independentes como são, ninguém pode interferir, dar ordens ou comandar. Mas, como todas as instituições humanas, entram em declínio periódico, perdem vitalidade, necessitam de mudança e renovação. Numa palavra, reforma. Ora, no nosso país, os tribunais e restantes instituições como a Procuradoria Geral da República, o Ministério Público, os Conselhos Superiores e outros Tribunais superiores, além dos numerosos tribunais civis, vivem há anos, talvez mesmo décadas, em crise crescente. O que nos faz pensar logo em mudança e modernização. E esperar pelas renovações necessárias. Todavia, o problema hoje é que a Justiça e as suas instituições perderam a capacidade de se auto-reformar. Depois de décadas a aumentar a sua força e a consolidar a independência, a Justiça encontra-se em beco sem saída, incapaz de realizar todas as suas funções com eficácia, prontidão, clareza e… justiça. No universo das instituições públicas portuguesas, a Justiça é talvez a mais criticada e mais mal vista pela opinião.

 

Depois de ter escapado ao 25 de Abril e à democracia, de ter passado ao lado da consagração dos direitos humanos, de ter evitado as implicações do mercado e da iniciativa privada e de ter ignorado, tanto quanto possível, a integração europeia e o respectivo direito, a justiça portuguesa parece estar ao abrigo de qualquer actualização necessária. Quase todos os indicadores disponíveis mostram uma justiça parada no tempo, com perdas ou estagnação de eficácia e com dificuldade em reparar quem merece ou castigar quem deve. Pior ainda do que de eficácia, a Justiça portuguesa parece estar a viver momento muito especial de crise de confiança, crédito e mérito.

 

Os magistrados judiciais e do ministério público aumentaram muito durante décadas (quatro vezes mais em outras tantas décadas), depois estagnaram e estão agora há anos em perda de número. Verdade seja dita que a produtividade e a eficácia, com mais ou menos recursos humanos, parecem nunca ter melhorado. Os sintomas são conhecidos e aparecem na imprensa todos os dias. Processos que se arrastam durante anos e décadas, sobretudo os que envolvem poderosos da política, das famílias e do dinheiro. Processos vistosos que esperam por resolução anos e anos. Uma opinião pública descrente que parece ter perdido a confiança. A permanente sensação de que há envolvimentos políticos graves, de que existem influências partidárias e de que as magistraturas estão divididas e se combatem entre si. A certeza de que são as classes médias, os trabalhadores, os destituídos, as mulheres e as crianças que mais sofrem com a má justiça.

 

De contornos mal desenhados, pouco nítidos, sempre susceptíveis de insuficiente compreensão, há ainda, o sentimento e a crença de que existem intenções políticas e partidárias na acção e na inacção de procuradores e magistrados relativamente a casos que possam envolver políticos. É, aliás, digno de nota, talvez inédito na Europa contemporânea, o facto de haver tantos primeiros-ministros, ministros, secretários de Estado e líderes de partidos a contas com a justiça, sejam ou não verdadeiras as causas, as suspeições ou os boatos. Contam-se por muitos os processos, as ameaças de processo, os julgamentos, as condenações, os arguidos, os suspeitos e as detenções de políticos e governantes. Somam-se as ameaças, os inquéritos abertos ou sugeridos, as escutas telefónicas durante anos, a vigilância discreta, os processos secretos que não podem ser consultados pelos suspeitos ou pelas vítimas e os relatos de supostas ou reais escutas telefónicas. Contam-se por muitos os processos iniciados e nunca acabados, as vigilâncias não concluídas, as ameaças de inquéritos injustificados, as fugas de informação e de matéria processual, o boato selectivo e a intriga dirigida. Será que as classes políticas portuguesas são particularmente corruptas, ilegais e libertinas? Ou será que as magistraturas portuguesas são particularmente velhacas, sedentas de poder e antidemocráticas?

 

Os actuais candidatos a Presidente da República têm-se revelado muito activos. As características especiais desta eleição fazem com que as campanhas sejam particularmente intensas. Os candidatos mostram-se muito intervenientes, com ideias para a acção política, opinião sobre quase tudo o que existe no espaço público, sugestões para a economia, a saúde, a educação, a segurança social… quem sabe que mais. Em quase tudo são excessivos. No entanto, relativamente à Justiça, o silêncio é absoluto. Nem crítica ou comentário, nem reforma ou planos. Ora, a verdade é que a crise da justiça é talvez a mais antiga e a mais grave da democracia portuguesa. E os candidatos dizem… nada! Ou tão pouco!

 

O que não destoa do silêncio estranho das instituições, incluindo deputados e autarcas, relativamente à Justiça e aos Magistrados e Procuradores. Dir-se-ia que não sabem. Ou não querem. Pior ainda: que têm receio.

 

Na ausência de auto-reforma, que seria o ideal, a reforma e o melhoramento da justiça só podem vir de fora. Do governo? Do parlamento? Do presidente? Por causa da independência dos tribunais, do governo só devem vir os meios. Do parlamento, a legislação. Do Presidente da República é que pode vir algo mais: a influência, a inspiração, a energia e a preocupação.

 

Não esqueçamos que o Presidente tem o poder de nomear o Procurador Geral da República, o presidente do Tribunal de Contas e dois vogais para o Conselho Superior da Magistratura. Parece pouco, mas não é. É um enorme poder. Mas poderá ainda influenciar partidos, corpos profissionais, instituições e opinião pública. Como poderá inspirar deputados e eleitos. E persuadir magistrados. Tudo isto, sem pisar os pés da independência e da autonomia. E mesmo sem esperar pela revisão da Constituição.

 

Ajudava, por parte dos candidatos, mais empenho e mais sentido da responsabilidade. Mas não. Atá à data, à Justiça disseram nada!

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Público, 22.11.2025

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