Enquanto, na Ásia, um inédito arraial exibe os novos vencedores e o futuro arranjo da balança de poderes, deste lado do Ocidente, o Presidente dos Estados Unidos envia tropas para Chicago ou mata uma dúzia de traficantes de droga venezuelanos. Após alguns anos de mutação lenta e gradual, de repente, o mundo acelerou. A ponto de merecer consagração. Na China e na Rússia. Com mais de metade do mundo a apoiar e a regozijar-se.
É verdade que, de tempos em tempos, o mundo necessita de ajustes. E mesmo quando estes não parecem ser necessários, acontecem. Aceite-se que o mundo actual está a pedir arranjo. Há alianças a desafazer-se, há novas a preparar-se. As desigualdades económicas e sociais têm crescido. As diferenças de poderio militar entre as nações são maiores. A competição armada atingiu graus perigosos. O mundo pobre e miserável, sobretudo africano, vive em guerra civil e é todos os dias despojado. A Rússia recuperou toda a sua força agressiva. A China chegou a uma posição única na história. Temendo a perda da hegemonia clássica, a América perturba com a guerra comercial. A Europa oscila entre a letargia e a hesitação.
As diferenças entre hoje e o que o mundo era há meio século são enormes. Há pessoas, de cinquenta anos, que não acreditam. Quando se menciona o apartheid, o comunismo, a pobreza, a fome e o racismo, há quem pura e simplesmente não acredite. Quem pense que se trata de banda desenhada. Em poucos anos, os mapas mudaram. A “Guerra Fria” começou e acabou, para ser agora novamente receada. O ascendente comunista e socialista foi imparável, antes de decair com estrondo. A chegada das colónias à independência anunciava uma nova humanidade. Uma voz do chamado “Terceiro Mundo” trazia para o presente um futuro apenas sonhado. Mas as guerras civis e a fome em África vieram desmentir a promessa. Lentamente, parecia que os Estados Unidos perdiam a sua hegemonia indiscutível. A derrota no Vietname sugeriu uma fragilidade inesperada. Entretanto, o mundo do petróleo e da finança internacional afirmou-se com laivos de independência. E o desafio asiático, ganho em poucos anos, anunciou um novo equilíbrio ainda mal desenhado. A implosão absoluta do mundo comunista soviético chegou a parecer uma promessa de democracia. Tudo isto e muito mais se passou no tempo de uma vida.
Não é possível, pelo menos por enquanto, falar em nova aliança, ou sequer novas alianças, que incluam a China, a Rússia, a Índia, o Irão, a Coreia do Norte… Quem sabe se o Paquistão, o Iémen, o Laos e o Vietname…. Hipoteticamente, outros ainda, em África, no Próximo Oriente, na Ásia e até na América Latina. Mas é inegável que estamos a viver uma conjuntura favorável a uma convergência antiamericana, antiocidental, antieuropeia, anticapitalista e antiliberal. E também ainda uma conjuntura, ou antes, uma nova estrutura, favorável à China e à Rússia. A primeira como nova potência liderante, económica e industrial, mas já também tecnológica, científica e militar. A segunda, como potência militar restaurada e fornecedora de matérias-primas.
Para explicar aonde chegámos, há muitas interpretações, claro. É possível afirmar que a China só chegou aqui porque o mundo ocidental lhe abriu as portas, pediu emprestado, deslocalizou indústrias e transferiu tecnologia, tudo à espera do trabalho barato, da sociedade controlada e de um fabuloso mercado inesgotável. Como também é possível declarar que foi igualmente o mundo ocidental, europeu e americano, que enriqueceu a Rússia, comprando-lhe energia sem limites e matérias primas raras a preços invejáveis. É possível concluir que o mundo ocidental ajudou a fazer a China e a Rússia de hoje.
Também não se pode negar que algumas novas potências se afirmaram. A Índia, o Paquistão e o Irão, pelo menos, fazem parte deste pacote “emergente”. Sem falar na aparição do fortíssimo poder do mundo islâmico graças a dezenas de anos de acumulação de colossais receitas do petróleo.
Outros fenómenos podem ser referidos como fazendo parte deste processo de transformação da balança de poderes. Por exemplo, o desinteresse europeu pela força armada, acompanhado da dependência marcada dos Estados Unidos. Estes, por diversas razões, reduziram o seu grau de empenho na aliança atlântica: ou porque olharam para o Pacífico e outras partes do mundo; ou porque entenderam que a Europa não os acompanhava. Pelos bons e pelos maus motivos, o certo é que, curiosamente, é no tempo do Presidente Trump que a América ficou menos poderosa e com rivais mais à sua altura.
A Europa está a perder. Seguramente. O universo europeu do Estado social e da política de prioridade aos direitos humanos está a perder também. Tal como a crença numa identidade europeia afecta à democracia, à cultura, à igualdade social e aos direitos humanos. Ao mesmo tempo incapaz de integrar imigrantes e povos de todos os horizontes e de regular os sistemas de acolhimento de estrangeiros.
Tempos houve, há poucas décadas, em que os países deste mundo, velhos e novos, aspiravam à designação de democracia. Inscreviam-na nas suas Constituições e até na sua designação oficial. As Repúblicas latino-americanas afastavam-se das suas tradições de golpes de Estado e procuravam alicerces para a democracia. Em África, apesar dos milhões de mortos nas suas guerras civis, os novos Estados independentes afirmavam fé democrática, declaravam com valor de lei que a democracia era o seu regime. As Repúblicas e os Estados asiáticos, com menor convicção, revelavam também a sua intenção democrática.
Tudo isso acabou. Ninguém quer ser democrático, a não ser a minoria ocidental. E mesmo aqui, democracia é cada vez mais, para muitos, equivalente de conservador e privilegiado. Para não dizer opressor. É possível que a Europa e o Ocidente não percam muitas das suas regalias ou vantagens, nomeadamente económicas. Mas quem perde mesmo é a democracia e os direitos humanos.
Podem a Europa e o Ocidente não ter só feitos de que nos orgulhemos. Muitos na história, alguns mais recentes. Entre guerras e conquistas, opressões e ditaduras, não faltam páginas negras. Mas a democracia e as liberdades dos cidadãos ficam como património excepcional que nenhum outro continente garantirá. Com a excepção jugoslava, as últimas décadas foram exemplos únicos de paz e democracia. Podemos não perder a liberdade e a democracia, mas deixámos de ser um exemplo. Os outros, a maior parte do mundo, deixaram de querer ser como nós.
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Público, 6.9.2024

1 comentário:
“O Presidente dos Estados Unidos envia tropas para Chicago ou mata uma dúzia de traficantes de droga venezuelanos”
País algum pode ser ou ter poder com uma Sociedade desgarrada, balcanizada e, acima de tudo, tomada pelo delírio do burguês ou fidalgo.
2/3 do mundo vê o “nosso património” como um vírus. Acontece que foi a voragem desse vírus que lhes proporcionou este assinalável salto para a ribalta de potência(s) liderante(s). Resta saber que destino terão? Como conseguirão manter pujança económica e conter o seu povo, sem a receita ou com a submissão deste terço virótico?
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