sábado, 28 de junho de 2025

Grande Angular - Depressa e mal

 Há políticos assim: consideram que o maior valor do governo é fazer, fazer depressa, decidir, decidir já, não se arrastar em discussões, estudos e preparação. “Nós fazemos”, “somos fazedores”, gostam de dizer. E comparam-se, não com quem prepara bem as decisões, mas com quem nada faz e se perde em conversas intermináveis. O que facilita, evidentemente. Comparar com quem faz pouco e mal tem o condão de encandear os pobres de espírito. Com esta tosca inspiração, o novo governo começou a fazer. Entre as primeiras decisões anunciadas, contam-se medidas relativas à defesa, à imigração e à nacionalidade ou naturalização. Preparadas a correr, mal elaboradas e preocupadas com a aparência. Destinadas a espantar a opinião, a incomodar o PS e a calar o Chega.

 

Para a defesa, são anunciados aumentos de despesa. Não se diz porquê, nem para quê, sobretudo agora que a guerra e a paz estão em causa. Diz-se simplesmente que se alcançarão os 3.5% do PIB daqui a pouco e 5% daqui a dez anos. Para já, são 2%, com um aumento de pouco mais de mil milhões de euros, promessa feita há anos e nunca cumprida. O destino é simples: “equipamento, recursos humanos e reforço de infra-estruturas”. Percebe-se imediatamente que nada estava preparado. E que estes grandes rótulos são deliberadamente vagos. E servem para tudo. Diz-se quanto se gasta, depois se verá em quê. Não se diz o que é prioritário. Nem o que é necessário para o país. Nem os sectores considerados estratégicos. Por exemplo, servem os aumentos para o mar (Armada, marinheiros, fuzileiros, submarinos, equipamento…), para a Força Aérea, para corpos especiais de intervenção multilateral ou para alargar o recrutamento? Destinam-se à componente nacional da defesa ou para o contributo internacional e atlântico? E mais dúvidas haverá.

 

Não será este o momento adequado a uma reflexão que actualize o Conceito estratégico nacional, assim como a obsoleta Lei de Programação Militar? A nova política americana, as fracturas dentro da NATO e da UE e as guerras no Próximo Oriente e na Ucrânia não são motivos suficientes para que os organismos e instituições dedicados à defesa nacional se empenhem em debater e redefinir, antes de fazer despesas? Parlamento (e seus principais partidos), Presidente da República, Conselho de Estado, Conselhos Superiores Militar e de Defesa, além de outras instituições, deveriam já estar mobilizados para debater, empenhados em chegar a conclusões sérias, que o tempo é curto, as necessidades grandes e a urgência muita. E as matérias politicamente sérias e complexas. Apesar de ser verdade, não basta dizer que é a NATO e os EUA que mandam.

 

O que se pretende gastar é tanto que justifica o tempo necessário para bem decidir. O orçamento é tão importante que exige convergência dos principais responsáveis e representantes. Portugal não tem dinheiro para tudo. Nem sequer tem muito dinheiro. Gastar um pouco em tudo significa que não tem prioridades nem conceito. Prometer gastar sem saber em quê é mostrar que não existe política nem objectivos. Prometer gastar na rotina, como dantes, equivale a ter a certeza de que não se quer aproveitar a oportunidade para rever o nosso esforço nacional. Por outras palavras, significa que o governo entende que as opções de defesa não são de política geral, não dizem respeito ao país, nem traduzem opções importantes para o nosso futuro. Parece que estas decisões têm um objectivo central: o novo governo quer agradar a alguns dos seus parceiros e à NATO, quer mostrar-se como bom aluno. Assim, transforma a defesa nacional num assunto de contabilidade e num negócio de esquina. A defesa nacional merece mais. O nosso país também.

 

Também a nacionalidade, a naturalização e a imigração foram objecto da iniciativa apressada do governo. Os motivos parecem evidentes: receio do Chega, previsão de comparações com Trump e a reunião da NATO. Também podemos pensar no reflexo pacóvio de tentar sensibilizar a população com temas “nacionais”, defesa e nacionalidade! Certo é que foram anunciadas regras novas para a legalização de imigrantes, a naturalização e o agrupamento de famílias. As propostas são muitas e variadas, umas conhecidas, outras inéditas. Umas sensatas, outras absurdas. Em certos casos, estão mesmo em causa a constitucionalidade, a justiça e a moral.

 

Uma nova regra em especial merece discussão: a perda de nacionalidade como castigo para certos crimes cometidos por naturalizados. Pensa-se no que Trump faz a muitos estrangeiros, designadamente Açorianos e Madeirenses. A questão merece discussão séria, juízo moral e jurídico, reflexão cultural e política. A nacionalidade não pode ser moeda de troca, não é aval de comércio ou licença de caça, não se pode dar e retirar conforme os comportamentos das pessoas. Admitem-se condições severas para a obtenção de autorização de residência e para a obtenção de nacionalidade. Usar a nacionalidade como castigo não é aceitável. 

 

Outros aspectos merecem reflexão. Usar critérios culturais para obtenção de autorizações de residência e nacionalidade é muito discutível. Uns, com licenciatura e doutoramento, currículo académico e científico e estrelato em futebol ou música, teriam aberta a via rápida, seriam desejados. Outros, simples trabalhadores, teriam a vida difícil, os prazos longos e as concessões incertas. Nesta área, teríamos ainda a novidade das provas de cultura, História de Portugal, democracia e cidadania. Seria exigido o conhecimento da língua, o que parece aceitável. Mas a cultura portuguesa? Provas de cultura e história? Podiam começar pelos portugueses. E também podiam perceber o que se faz aos portugueses, em iguais circunstâncias, no estrangeiro. Assim, o governo prepara-se para criar dois sistemas de legalização, de reagrupamento e de naturalização: um para as elites e outro para os indiferenciados. Isto é, dois sistemas de direitos. O que não é aceitável. Moral, jurídica e politicamente inaceitável.

 

Mas o pior deste procedimento é a pressa, a falta de preparação e a ausência de vontade de envolver uma boa parte da população, um grande número de instituições e vários partidos. A defesa e a nacionalidade são coisas sérias. Com elas não se brinca. Nem se faz política barata.

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Público, 28.6.2025

sábado, 21 de junho de 2025

Grande Angular - A liberdade tem geografia

Por António Barreto

questão demográfica ameaça a Europa. E a América. E outros continentes. Até a China, parece. Já conhecemos alguns temas centrais. O envelhecimento da população enfraquece as economias, destrói o vigor das sociedades, sobrecarrega os serviços sociais e de saúde e acelera o declínio dos países. A redução drástica da natalidade agrava o envelhecimento, faz da população um recurso raro, entristece as sociedades e torna impossível a actividade económica. A crescente proporção de idosos diminui a criatividade, aumenta o conservadorismo e confirma uma espécie de passividade das populações. Sem jovens e com velhos, as sociedades estão condenadas à decadência.

 

É verdade que o aumento da esperança de vida é um triunfo da humanidade, da Europa e de Portugal. Quem nasceu em 1940 podia esperar viver 50 anos. Isso mesmo, 50 anos. Hoje, essa esperança é de 82. Qualquer que seja o juízo feito sobre a qualidade ou os problemas da sociedade actual, basta este facto para se ter uma noção do progresso. Para isso, contribuíram a medicina, a água potável, a urbanização, os serviços de saúde e educação, o progresso na alimentação e outros factores. Só a assistência materna é responsável por uma parte muito importante deste progresso. Tal como a água potável e as vacinas.

 

Não se imagina que o envelhecimento seja pior para as populações. Mas é verdade que as suas consequências podem ser gravosas para todos. É infeliz que muitas sociedades não saibam ou não possam organizar-se para viver com tantos idosos. Os quais, bem vistas as coisas, são tão gente quanto os mais novos. Todavia, a maior parte dos países não sabe ou não gosta de viver com idosos. O que muitos pensam deles, mas nem sempre dizem, é tremendo, de uma crueldade sem par: fazem pouco, dão muito trabalho, estão sempre doentes, é precioso cuidar deles, custam caro e são rabugentos. Já pouco dão e muito pedem.

 

Retomemos o raciocínio. Sociedades envelhecidas, sem vitalidade, sem jovens, pedem imigrantes. Em quaisquer condições. Legais ou não. A ganhar bem ou misérias. Com e sem contrato. Com e sem família. Com e sem acesso aos serviços de saúde e de educação. Uns são bem tratados, outros nem por isso. Uns são facilmente integrados, outros vivem sempre em guetos por eles próprios criados. Entre os que acolhem, uns querem imigrantes porque lhes dá jeito e lucro, outros porque acham que estão a fazer algo pela humanidade. Uns tratam os imigrantes como animais trabalhadores, outros como anjos intocáveis.

 

Há muita gente na esquerda que quer imigrantes, talvez tanta quanto a que não quer. Igualmente à direita: os que acolhem e integram os imigrantes são talvez tantos quantos os que os detestam e culpam de todas as malfeitorias. As realidades mais básicas apenas são aceites por poucos. Entre os imigrantes, a maioria é de pessoas como nós. Entre os residentes nacionais, a maior parte é de gente como eles. Mas há, infelizmente, entre grupos de direita e de esquerda, quem queira fazer da imigração terreno de batalha: quem exagere no racismo e na exploração, como há quem radicalize o anti-racismo e a luta de classes. A discussão e a luta são ferozes. Se há tema dado a preconceitos e à irracionalidade, é este. E é provável, é mesmo certo que, além de discussão, haja confrontos, turbulência e conflito. 

 

A crise na demografia, na natalidade e na economia é tal que os países desenvolvidos pouco podem fazer sem imigrantes. A crise da fome, da miséria, do atraso, da corrupção e da quase permanente ditadura é de tal modo inerente aos países não desenvolvidos e não democráticos que os que fogem para imigrar fazem-no de qualquer modo. Há total descontrolo nuns países e nos outros. Há crescente dificuldade de integração. Nos países de chegada, culpam-se os imigrantes de muitos males. Nos países de partida, empurram-se os imigrantes e trafica-se com o trabalho.

 

Nas ditaduras e nos países autoritários, estes problemas não existem: não há imigração. Nestes países, imigrantes são os candidatos a ir embora. Mas é este, de qualquer maneira, um dos temas mais difíceis para os próximos anos nos países mais desenvolvidos e sobretudo nos países democráticos. Já se percebeu que, sem controlo de legalidade e sem integração, o conflito veio para ficar. E para aumentar.

 

Uma das dificuldades deste tema reside no facto de estarmos perante uma contradição fundamental dos tempos actuais. Por um lado, a globalização. Por outro, a nacionalidade. Com a primeira, pensa-se em cidadãos do mundo, sem passado nem cultura própria, todos iguais, sem fidelidades nem identidades. Isto, em mundo aberto ao comércio, às viagens e à moradia indiferente localizada em qualquer sítio. Com a segunda, pensa-se nas identidades nacionais, nas fidelidades que permitem que culturas se construam. Nestas últimas, não é difícil pensar na independência nacional que só se faz com fronteiras. Na autonomia que só se garante com leis próprias. Na liberdade que exige quem a defenda e desenvolva. Na democracia, que tem uma geografia. A ponto de se acreditar em que não há liberdade, nem democracia, sem identidade, sem cultura própria e sem independência.

 

A ideia de que existe e deve ser favorecida a globalização política, humana e social é própria de quem aspira a governar o mundo sem limites e sem contraditório. Pensar que os homens e as mulheres de qualquer país são iguais a todos os outros em identidades, direitos, deveres, passados, memórias e aspirações ou é ingénuo ou é disfarce para aspiração autoritária. Os melhores limites e obstáculos ao totalitarismo são as identidades nacionais. As instituições civis. As independências nacionais. As fronteiras onde devem estar. As culturas e as memórias de cada um. As tradições e as crenças. A capacidade de conhecer em quem se vota e de entender quem nos representa.

 

As aventuras nacionalistas acabaram quase sempre em ditadura ou guerra. E será esse certamente o futuro, se houver novas tentativas desse género. Também a dissolução das identidades e das culturas é caminho feito para o totalitarismo. Só as sociedades capazes de defender as suas instituições e as suas liberdades são capazes de receber e integrar imigrantes. Mais ou menos controlo, mais ou menos pessoas a bater à porta não são as questões essenciais. O mais decisivo é a força da comunidade capaz de proteger as suas instituições. Difícil é o ponto de equilíbrio entre a globalização e a identidade. Uma sem outra é sempre contra a liberdade.

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Público, 21.6.2025

sábado, 14 de junho de 2025

Grande Angular - Servir o povo

 A expressão em título tem vida longa e significado variado. De Mao Tsé-Tung a Mário Soares, de partidos marxistas latino-americanos, asiáticos e escandinavos a radicais italianos, muitos foram os que utilizaram esta expressão como lema e bandeira, identidade e profissão de fé. Por vezes, por timidez semântica, a expressão é adaptada e transformada em Servir os portugueses ou Servir Portugal. Ou Servir o País, na versão mais laica. E pode bem dizer-se que, apesar do lirismo ingénuo e mau grado o cinismo provável, a verdade é que é uma bela expressão. Servir o Povo! É difícil encontrar desígnio mais nobre. Por isso, tantos políticos, militares, sacerdotes e intelectuais recorrem a este lema.

 

Modernamente, uma das melhores maneiras de realizar esse desígnio, será certamente a de organizar e manter vivos os serviços públicos. Estes são de toda a espécie, da saúde à educação, dos transportes à energia, da água corrente às telecomunicações, da assistência jurídica à informação e a tantas outras áreas de actividade. Organizar serviços públicos e mantê-los em funcionamento, eis a obrigação das entidades públicas. Ter direito é uma coisa. Faz parte do catálogo constitucional. Formalmente, entre nós, o direito está generosamente definido. Pior é a sua concretização. O acesso à saúde, por exemplo, está contrariado pela mediocridade dos serviços. O acesso à educação também está condicionado pela falta de qualidade dos serviços de instrução e formação. O direito à informação está tantas vezes limitado pela ausência de transparência. O direito a uma velhice digna também pode estar em causa por serviços medíocres. Em poucas palavras, os serviços públicos, a sua qualidade, a sua eficiência e a sua humanidade são condição para respeitar os direitos dos cidadãos. São meio essencial para servir o povo.

 

É neste domínio que o Estado português tem faltado e a situação se agrava dia após dia. É aqui que a política tem falhado. É no domínio dos serviços que a democracia mais tem desapontado os cidadãos. É por causa deste défice crescente que estes mais descrêem da democracia e dos democratas. É nestas condições que a abstenção política e o desinteresse são enormes. Todos os dias, a democracia se perde nas filas de espera, nos quilómetros de maus transportes, nos casos de justiça adiados, nos doentes desacompanhados, nos idosos desprotegidos, nos telefonemas sem resposta, nos meses e anos à espera de cirurgia, consulta ou exame.

 

Nos transportes públicos, dos autocarros aos eléctricos e dos comboios aos metropolitanos, os atrasos, a insuficiência, a miséria, os encontrões, as enchentes, o desconforto, a falta de higiene, a chuva, o calor e a insegurança são crescentes. Quem dirige e quem ordena não sabe o que é o drama quotidiano de milhões de pessoas às horas de ponta, nos longos percursos para o trabalho e para casa e nas idas às escolas com as crianças. As duas a três horas de transporte público por dia deveriam obrigar qualquer autarca ou político a ir ver e a parar para pensar. 

 

Nos serviços do Estado, nas escolas, na segurança social, nos hospitais e nos centros de saúde, as horas de espera em fila, o incómodo e o desconforto de quem tem de esperar são dos factos mais opressivos da nossa sociedade. Em vários serviços, é necessário sofrer longas esperas, desde as primeiras horas da madrugada, não para ser atendido, não para tratar, mas sim para obter uma senha que dará, ou não, direito a ser recebido umas horas ou uns dias depois. Ou tirar um “ticket” que pode negociar.

 

Os serviços de imigração são belos retratos do modo como tratamos dos outros e de nós próprios. As filas de desespero e opressão, as noites de frio e de desconforto, a violência de tantas dessas situações, o aproveitamento da pobreza e da necessidade dos outros, fazem parte do nosso pior retrato.

 

Os chamados “serviços públicos” (como se os outros também não fossem…) de água, electricidade, gás, telefone e esgoto, além de vagarosos e de tão fraca qualidade em tantos locais do país, nos centros como nas periferias, comportam-se diante dos cidadãos da maneira mais déspota que se imagina. Mudam os preços sem aviso. Multiplicam-se em documentos incompreensíveis a fim de se poder defender em tribunal. Exploram os consumidores, sobretudo os mais fracos e sem meios de defesa, com desplante e soberba. 

 

Na segurança social e nos serviços sociais de toda a espécie, sobretudo os que se ocupam dos doentes e dos idosos, as filas de espera, o silêncio, os telefones mudos, os “sites” paralisados e as tenebrosas respostas gravadas com que milhões, sem esperança, são atendidos, resultam da falta de humanidade de serviços que dela deveriam fazer a sua marca principal. Parece só não haver maus tratos e má resposta nos serviços inexistentes de apoio aos idosos, aos doentes terminais, aos inválidos, aos deficientes e aos doentes crónicos.

 

Na justiça, que também pode ser considerada serviço público, são proverbiais os adiamentos, as deslocações inúteis, as esperas e as prescrições por falta de despacho. É um dos sectores da vida social onde pior se trata o cidadão, com destempero e soberba, com distância e secura, sem desculpa nem justificação. 

 

A vida política e a administração pública têm seguido uma evolução desastrada. Contentam-se com a formulação de ideais e de leis generosas, com a elaboração de planos e estratégias, com o recrutamento de funcionários, com o aumento dos orçamentos, com a capacidade eleitoral e demagógica de tais realizações, mas não prestam atenção à qualidade dos serviços, à vida de pessoas e famílias, às necessidades especiais de tanta gente e aos mais desfavorecidos. 

 

Que se passou, que se tem passado, entre nós, nas últimas décadas? Criaram-se serviços de toda a espécie. Contratou-se pessoal. Compraram-se edifícios, computadores e equipamento. Fizeram-se leis e regulamentos. Mas foram vários os governos, várias as administrações, vários os partidos (sobretudo o PS e o PSD) que descuidaram, que se revelaram desleixados, que não se importaram, que se satisfizeram com a existência formal e burocrática das leis e das instituições. Mas a verdade é que os serviços de saúde, de educação, de idosos, de transporte, de segurança social, de protecção e segurança, todos esses serviços públicos estão em dificuldade e em declínio. Os governos não souberam manter a atenção, prever a demografia, cuidar das consequências do turismo e da imigração, prevenir a emigração, orientar o crescimento urbano e cuidar dos transportes. Quem assim trata os serviços públicos não serve o povo.

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Público, 14.6.2025

sábado, 7 de junho de 2025

Grande Angular - O Albergue espanhol

 É uma antiga expressão, uma fábula, uma lenda e um mito: o “Albergue espanhol” é o local para onde se leva o que se quer e onde só se come o que se traz. O significado actual é moderadamente crítico ou pejorativo: qualquer coisa ou sítio onde há de tudo, pessoas, comidas, ideias e políticas, pode ser tratado de albergue espanhol. Com a sensação de que não há escolha nem critério, está tudo misturado, cada um leva o que tem e quer. Diz-se com frequência dos programas eleitorais ou de governo: está lá tudo! A propósito da “Reforma do Estado”, pérola prioritária da tomada de posse do governo, a invocação deste albergue pode justificar-se, é o que veremos nos próximos dias. Ou já há muito trabalho feito ou corremos o risco de estarmos diante de uma miragem. É o que saberemos em breve. É o que deveríamos ver nos próximos debates parlamentares sobre o programa de governo.

 

É também uma velha ideia, um ideal antigo e uma promessa segura: a reforma administrativa, a reforma do Estado e reforma da Administração Pública são três designações conhecidas e correntes. Desde Marcelo Caetano que a expressão ganhou foros de política e de utilização formal. Desde o século XIX, aliás, que a ideia está no ar. Mouzinho da Silveira, Passos Manuel, Costa Cabral e outros deixaram os seus nomes ligados ao tema. Depois do 25 de Abril, foram poucos os governos que não incluíram a Reforma do Estado e da Administração Pública como prioridade, sinal distintivo, garantia de renovação e de mudança. Por vezes, tratava-se só da Administração e dos serviços, outras vezes era a descentralização. Frequentemente, era de Regionalização que se falava.

 

O último governo adoptou a tradição. A reforma do Estado é uma prioridade. A prioridade. Segundo as suas palavras, é sobretudo de burocracia que se trata. Mas rapidamente se lêem alusões aos direitos do cidadão, às liberdades públicas e ao progresso económico. Tudo leva a crer que seja, no seu espírito, mais do que eficácia e prontidão. Mais do que “simplex”, talvez. Mas não é claro.

 

Esta “reforma do Estado” destina-se, o que já não seria pouco, a alterar os procedimentos quotidianos dos serviços, a transparência, a eficácia, a clarificação de competências e o esclarecimento de funções? Ou pretende-se realmente alterar os poderes e os direitos dos cidadãos perante o Estado? Será que se deseja mudar o essencial das competências das freguesias e dos municípios? Ou procura-se mesmo realizar finalmente ou afastar definitivamente o programa de regionalização que continua a encantar ou ensombrar tantos portugueses?

 

O Serviço Nacional de Saúde faz parte da reforma do Estado? E o sistema público de Educação? A segurança social? A Justiça? A polícia? A segurança e a defesa? Esta breve enumeração já basta para mostrar os equívocos criados. Os poderes das autarquias, o número de municípios e de freguesias e as famosas e famigeradas regiões fazem parte do que este governo entende por reforma do Estado? E a Administração Pública, que evidentemente é peça central da reforma do Estado, a que título será olhada: o da reorganização dos serviços, das direcções gerais, dos institutos e das empresas públicas ou municipais? Ou da relação de tudo isso com os cidadãos, os direitos destes, as suas capacidades de auto-organização? De que estamos a falar, de uma “Reforma da Administração” ou de uma “Reforma do Estado”?

 

Uma reforma do Estado, qualquer que seja a sua versão, desde a mudança da burocracia até à alteração das estruturas e dos fundamentos do Estado moderno, exige estudo prévio, uma espécie de “Livro branco”, capaz de aliar o pensamento ao conhecimento e a informação ao envolvimento dos interessados. Um esforço desta dimensão, qualquer que seja o modelo adoptado e o fim explícito, pede participação e colaboração de quem sabe e a quem se destina. Um conselho político, social, científico ou consultivo teria papel decisivo. A participação de associações e instituições, sejam as universidades e as associações profissionais, sejam as empresas e os sindicatos, é indispensável. A personalidade e a competência dos novos ministros mais interessados neste tema (Maria Lúcia Amaral e Gonçalo Matias) são garantias da seriedade de propósitos. Mas o tema é mais vasto do que a personalidade de dois ministros.

 

Será que todo o governo está realmente empenhado nesta reforma? Incluindo e a começar pelo Primeiro ministro? Será que o partido de governo está sinceramente envolvido? O Presidente da República foi devidamente informado? Já existe algo que se pareça com um plano, um projecto, um roteiro ou um programa com objectivos e datas? Está previsto o estímulo a um grande debate público?

 

Podemos supor que se trata de uma reforma do Estado de grande amplitude. Não total, mas de grande extensão. Ocorrerá a alguém que é possível fazer o que quer que seja sem maioria parlamentar? Ou até mesmo com uma maioria que envolva algum consenso com outras forças de oposição? Alguém pensará que é possível tocar nos poderes das autarquias locais e das regiões administrativas sem uma folgada maioria política? Ou tratar-se-á de grande ilusão e de grandiloquente plano destinado a demonstrar a impossibilidade de governar por causa do mau comportamento da oposição? Alguém pensou seriamente em que um governo minoritário pode levar a cabo uma “Reforma do Estado”? Ou tão só uma reforma da Administração Pública? 

 

O facto de o governo afirmar que pretende realizar tão importante e tão decisiva reforma, sabendo que é um governo minoritário, sugere as piores reacções de incredulidade e de desconfiança. Nenhum dos grandes partidos de oposição, Chega ou PS, estará disponível para um tal esforço e para uma tarefa desta dimensão, sabendo que o espírito, a ideia, os objectivos e os louros serão todos do governo minoritário. Anunciar que pretende fazer o que já sabe ser impossível em condições de clara minoria é de mau agoiro. A fazer-nos pensar que o governo já cometeu o seu primeiro erro: o de pensar que os cidadãos são estúpidos.

 

Há outras hipóteses de explicação para este gesto. Primeira: a crença de que, à força de ser derrubado, o partido acabará por ter a tão ambicionada maioria parlamentar. Segunda: a convicção de que o Partido Socialista está tão fraco que fará tudo o que se lhe pede, incluindo o suicídio. Terceira: a possibilidade de o governo justificar com a “reforma do Estado” a sua enorme dificuldade em tratar da saúde e da Justiça. Em qualquer caso, é fraca a ambição.

Público, 7.6.2025