domingo, 9 de fevereiro de 2025

Grande Angular - Vencedores e derrotados

 Parece haver consenso: vivemos tempos de mudança e de transição como não se via há décadas. É tão forte, profunda e rápida esta mudança, cujo princípio conhecemos e cujo fim nem sequer imaginamos, que não é arriscado afirmar que, dentro de vinte ou trinta anos, aos olhos de hoje, o mundo será irreconhecível.

 

Não é o conceito abstracto de mudança que suscita apreensão. Na verdade, sempre o mundo mudou. Devagar ou depressa. Pacífica ou tumultuosamente. Para melhor ou pior. Mas sempre mudou. “O mundo é feito de mudança”, como está escrito há séculos. O que inquieta muitos são a radicalidade e a velocidade da mudança.

 

A verificação de que estamos em grande, secular e histórica mudança é comum a muita gente, é visível todos os dias. As balanças de poderes económicos, sociais, políticos, financeiros, militares, culturais e religiosos, nem sempre coincidentes, são já hoje o que nem sequer se imaginava há quarenta anos. Não se sabe se esta mudança, esta transição global e profunda, ainda vai no princípio ou se vai a meio caminho. Só sabemos que não está no fim. Ao contrário da mudança quotidiana, permanente, feita de mais ou menos solavancos, de transformações e ajustamentos imperceptíveis, a transição de que aqui se fala é mais rápida e mais brutal, a ponto de se poder afirmar que, em poucos anos, o ponto de chegada se encontra a anos-luz do ponto de partida.

 

Em todas as mudanças, sempre houve vencedores e derrotados. E sempre foi perigoso lidar com uns e com outros. Os vencedores afirmam-se dominando, conquistando, explorando e comandando, à força ou com jeito. Os vencidos reagem sempre mal, com sabor amargo da derrota, deixando-se submeter ou procurando a vingança.

 

Na actual transição, é o mundo inteiro que está em causa. Ninguém escapa. E todos serão vencedores ou derrotados. Perdem a Europa e os Estados Unidos, cuja hegemonia cessou inexoravelmente. Perde o Ocidente liberal. Perde o Império Russo, czarista, soviético ou plutocrata. Ganha a China. Ganham os outros grandes países asiáticos (a começar pela Índia). Perde a África, em conjunto ou aos bocados. Ganham os países islâmicos, sobretudo os produtores de petróleo. Perde a América Latina, a do continente ou a dos países individuais.

 

O passado recente ajuda-nos a perceber. Basta olhar para a participação de cada conjunto geográfico e político no total. Ver o que cada parte representa no total do mundo do PNB, da riqueza disponível, da população, do emprego, da força militar, da produção industrial, das patentes registadas, das exportações e de outros temas e sectores com significado. Em cada um destes sectores ou temas, com raras excepções, a Europa está sempre a perder importância. Já representou, ainda há pouco tempo, um quarto ou um terço do total mundial do produto, está agora próxima dos 10% ou pouco mais.  Até os Estados Unidos, em vários destes temas, deixaram de ter posição dominante. Antigamente, os Estados Unidos ditavam. Hoje, tentam a guerra comercial.

 

Que vão fazer, nesta transição, nesta quase reviravolta, os derrotados? E os vencedores? Olhando com cautela para a Europa, a América, a Rússia e a Ucrânia, a China e Taiwan e quase toda a África, rapidamente se percebe que grandes acontecimentos e grandes dramas esperam por nós.

 

Mas há assuntos que nos afligem mais. Perder domínio político ou poder económico é duro e difícil. Mas, perder a liberdade e a democracia é um verdadeiro desastre. Ora, aquilo de que aqui se fala é provavelmente, desde meados do século XX, o maior perigo ou a maior ameaça contra a sociedade democrática ocidental e contra o regime de democracia liberal. Estamos a assistir ao recuo da democracia e das tentativas democráticas em todo o mundo desde finais do século XX. O mundo democrático tem hoje menos poder e menos importância do que há algumas décadas. E há cada vez menos povos e menos Estados que aspiram a uma qualquer forma de democracia.

 

Há, evidentemente, ameaças “internas “e “externas”. Entre as primeiras, a ascensão rápida da extrema direita e gradual da extrema-esquerda. Ou as fissuras abertas entre aliados, como sejam os Estados Unidos e a Europa. Assim como os erros sucessivos dos governos democráticos. Para já não falar do crescimento do populismo e dos plutocratas. Além, evidentemente, do êxito das ideias antidemocráticas favoráveis às “políticas correctas” do género, das minorias, das raças e do multiculturalismo acrítico.

 

Quanto às ameaças externas, estas encontram-se previsivelmente na concorrência internacional, na competição política e militar e na guerra comercial agora desencadeada. E nas ambições dos novos poderes.

 

Além da velha rivalidade entre continentes, países e Estados, vivemos agora um confronto entre democracia e não democracia. Entre liberalismo e autoritarismo. O Ocidente e a democracia já perderam muito. Os regimes não democráticos ganham, dia a dia, posições importantes. Na força militar, na economia, na produção industrial e no acesso a recursos naturais no mundo inteiro. Pior ainda do que este confronto é a ascensão permanente, dentro das democracias, das vozes, das populações, dos políticos e dos eleitores não democráticos. A este fenómeno deve-se grande parte do declínio da democracia, tanto quanto ao avanço da não democracia.

 

Talvez o recuo da democracia e da liberdade dos ocidentais seja inevitável. Mas o que é decisivo não é o renascimento imperial. É, isso sim, a preservação das liberdades internas e da democracia como valor inalienável. E insubstituível. Mas há dificuldades no caminho. A primeira reside no facto de a diminuição de força económica e militar poder acarretar a perda de força política e o declínio da segurança democrática. A segunda encontra-se claramente no facto de as convicções democráticas e a crença nas liberdades estarem enfraquecidas pela abdicação e pela descrença. A Europa, o Ocidente, a democracia e as liberdades não estão em perda apenas na competição internacional. Começam a ser derrotadas pelos próprios. Por nós.

Público, 8.2.2025

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