sábado, 9 de novembro de 2024

Grande Angular- A democracia também é de direita

É um dos piores erros de alguns democratas, de muitos europeus e de quase toda a esquerda: a ideia de que a democracia é a virtude e a bondade, a correcção e a humanidade. Noutras palavras, a democracia é de esquerda. Esta ideia é acompanhada do seu reverso: a direita é antidemocrata, autoritária, racista, xenófoba, boçal e violenta. Zelar pelos outros, ser solidário e respeitar os valores humanos é de esquerda e democrático. Explorar os outros, dominar e agredir é de direita e, por conseguinte, não democrático ou antidemocrático. Esta crença é muito mais generalizada do que parece. As reacções à vitória de Trump, assim como, por exemplo, às de Bolsonaro, explicam-se em grande parte por esta convicção.

 

As frases mais ouvidas nestes tempos são inquietantes. Vêm aí catástrofes. Começaram as trevas. O fascismo outra vez. A democracia entre parêntesis. Tudo o que Trump e os Republicanos americanos se preparam para fazer é violento, desumano e fascista! Numa palavra, de direita. Noutra palavra: antidemocrático. Estes exemplos da ladainha democrática, europeia e de esquerdas são poucos comparados com os que lemos e ouvimos de manhã à noite nos jornais e nas televisões.

 

É assim que a esquerda se engana. Que a esquerda perde. Que a esquerda não vê os seus próprios erros. Como é assim que os europeus e os democratas perdem. A começar pelo facto de que esses erros não são falta de inteligência, de cultura e de conhecimentos históricos. Não! Esses erros têm origem nas suas próprias faltas. Incapazes de perceber os maus resultados dos caminhos que percorrem, europeus, democratas e esquerdas sofrem dessa miopia diante da América e de Trump. Como sempre, reagem acossados pelo medo. “Vem aí a extrema-direita, é preciso evitar os fascistas”. Com ainda esta ideia sinistra: se é da direita, é antidemocrático.

 

É infantil não perceber que a direita também pode ser democrática. Que a democracia também pode ser de direita. Que a democracia também pode ser cúmplice da exploração, do racismo, da xenofobia e do machismo. Tal como, aliás, a esquerda pode ser racista, xenófoba, machista e exploradora. Ambas podem ser imperialistas e belicistas. O que distingue as democracias (mais ou menos social, mais ou menos cristã, mais ou menos liberal…) são os valores políticos e sociais, são as políticas, não as regras de base democráticas: eleições livres e regulares, uma pessoa um voto, liberdade de expressão e de associação, independência da justiça e a regra de ouro da democracia “quem vence governa e respeita quem perde”. 

 

Na Europa e na América, é evidente a decadência da democracia, dos costumes políticos e da honradez nos serviços públicos. É constante a utilização das piores receitas para a actividade política: a propaganda, a mentira, a covardia, a ganância e a corrupção. Toda a gente parece de acordo com a ideia de que “a política se está a afastar perigosamente da população”. Daí a consequência: em vez de mudar a política, o que é preciso, dizem, é “aproximar a política dos cidadãos”, noutras palavras, mentir mais, fazer mais propaganda, esconder as verdades, pagar tudo e todos, corromper e prevaricar, comprar votos e consciências. Algumas esquerdas radicais e sobretudo as direitas perceberam isso. Tomam balanço nessas observações. E vociferam com toda a legitimidade aparente: limpeza, vontade do povo, pureza de intenções e grandeza da pátria. E acrescentam a luta contra os estrangeiros, todos os estrangeiros, os capitalistas internacionais, os grandes rivais do comércio e da indústria e os trabalhadores imigrantes. A este rosário de justas lutas, some-se a nação, a religião e a rejeição dos combates de cariz anti-fracturante que as democracias têm promovido: a escolha de género, a eutanásia, o aborto, o laicismo e a miscigenação. O que resulta destas promessas nem Deus sabe. Mas servem brilhantemente como alavancas eleitorais e políticas. Como se vê.

 

Em poucas palavras. Os erros das esquerdas, dos europeus e das democracias são fontes do êxito destas direitas. Trump e os seus amigos pertencem à democracia e usam a democracia, mesmo se pretendem capturá-la e provavelmente diminui-la. Mas são consequência e sobram da democracia e das suas faltas. Pode lamentar-se, mas Trump é também a democracia. Como Bolsonaro e Milei. Sabemos que Trump é um risco e uma ameaça para a democracia, tal como, em seu tempo e em seu sítio, a esquerda. Mas não se admite que esta espécie de severidade não sirva também quando se trata de ameaças contra a democracia vindas das esquerdas, de regimes e de governos antidemocráticos, antieuropeus e antiamericanos, como sejam os Russos, os Iranianos, os Norte-coreanos e os Venezuelanos de Chávez e Maduro, assim como do Hamas e do Hezbollah.

 

É possível usar a democracia contra a democracia. É provavelmente o que Trump fará ou tentará fazer. É o que fazem ou fizeram Bolsonaro, Berlusconi, Orban, Maduro e Netanyahu. É o que fazem os “ditadores eleitos” de África, da Ásia e da América Latina, em países com instituições fracas.

 

Identificar a democracia com a esquerda e estas com a bondade e a humanidade é o mais miserável erro de pensamento político que se pode imaginar. Impede de pensar e de compreender. Dispensa a argumentação. Quem assim se comporta ajuda as autocracias de todo o mundo. Estimula as direitas. 

 

Trump é narcisista e vaidoso. Boçal e ordinário. Autoritário a caprichoso. Ameaça a democracia. Promete comportamentos odiosos com alguns imigrantes, certos estrangeiros, parte das mulheres, uns tantos intelectuais e bom número de artistas. Tudo isso é certo e provável. Mas não deixa de ser eleito pela democracia, com a ajuda das forças democráticas, apoiado em instituições democráticas e ao abrigo de uma Constituição democrática. Trump não foi eleito por fascistas, robots, extraterrestres e fantasmas. Foi eleito por milhões de americanos de todas as cores e feitios, de todos os sexos, de todas as profissões, de todas as regiões e de todos os credos. Era bom que os europeus e as esquerdas percebessem que foi eleito pelo povo americano.

 

É provável que as esquerdas democráticas estejam a viver um dos seus mais negros períodos desde há mais de meio século. É possível que a democracia esteja a viver uma das piores ameaças desde há décadas. Verdade. Mas se os democratas e as esquerdas não percebem as suas culpas e as suas responsabilidades no processo, então é melhor prepararmo-nos para períodos ainda piores.

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Público, 9.11.2024 

3 comentários:

Jose disse...

Sempre e por todo o lado se dispensa a simples ideia de que a política sempre será perversa se os políticos o forem.
Sempre os valores enquanto pessoa, do indivíduo que dizendo-se político sempre diz querer servir, são excluídos da análise política.
É essa a base do sucesso de grunhos como o Trump; e o mesmo princípio garante a tolerância a um activismo de ignorantes para quem um chavão abarca toda a realidade presente ou passada, a aceitação de toda uma hoste de incompetentes e ficcionistas arvorados a voz pública.
E todo esse restolho acaba definindo uma realidade de incerteza e pura corrupção de valores.

Carneiro disse...

As verdadeiras ameaças à democracia são o sistema centrado em servir-se ou proteger-se a si próprio, desprezando o serviço e protecção ao cidadão, e a instrumentalização das instituições públicas para obtenção e ou manutenção de projectos de poder.

Depois democracia alguma prosperará e permanecerá livre se entrega ou vende a sua soberania, económica, energética, militar e alimentar a terceiros, especialmente sendo estes terceiros ditaduras ou autocracias.

A verdade é que para o Homem de esquerda, quando soberbamente excluiu a direita e abraçou a extrema-esquerda, o palco mediático e democracia tornaram-se numa espécie de sua propriedade privada. A virtude deixou de importar e tudo se tornou em insansos projectos de poder!

Jose disse...

O líder institucional, é primeiro que tudo um perito na promoção e protecção de valores -Fukuyama