As melhores democracias não são apenas as que garantem os direitos e deveres políticos e cívicos fundamentais. Por exemplo, as regras do voto universal e de “uma pessoa um voto”; a da realização regular de eleições livres; o princípio de quem ganha as eleições governa e respeita quem as perdeu; e as liberdades de reunião, de associação e de expressão. Podem enumerar-se mais, mas estas são as que melhor definem o essencial desta formidável convenção que é a da democracia política.
Mas as melhores democracias do mundo são as que, além destes princípios, garantem outras regras simples, como sejam a democracia económica, a democracia social e a democracia cultural. O que são estas, exactamente, não é muito claro e é por vezes do domínio da fantasia. Mas até por intuição se entende o que pode ser uma democracia económica. Sendo verdade que o essencial é a democracia política. Como é igualmente certo que uma democracia política pode sê-lo de modos muito diversos e até estar em combinação com reduzida democracia económica e cultural.
As democracias têm ainda, na esfera política, outras características que as qualificam e lhes dão carácter e eficácia. As formas de representação e de governo, por exemplo, são diversas, todas se qualificando como democráticas. O sistema de Justiça, por exemplo, é decisivo. Como são os sistemas eleitorais. Como ainda o sistema de governo e de Administração. Uma democracia política pode ser muito diferente de outra, não por causa dos princípios fundamentais (uma pessoa um voto, eleições livres, etc.…), mas graças a sistemas de governo muito diversos. O centralismo pode ser tão democrático quanto a descentralização ou a regionalização.
Uma das maiores foças do Estado reside na sua capacidade de estimular o contributo da sociedade, despertar as iniciativas independentes, deixar crescer quem merece, apoiar-se nas opiniões isentas e confiar em cidadãos livres. Estas são características que faltam tristemente ao Estado português e ao seu governo.
O Estado português tem enormes dificuldades em tratar livremente com a sociedade. Em reconhecer as instituições civis. Em deixar viver as associações livres. Em permitir que as empresas e os sindicatos tenham as suas vidas próprias, a sua independência. Em valorizar o contributo que os cidadãos, suas organizações e suas instituições podem dar para a vida colectiva, sem estarem dependentes dos poderes estabelecidos do Estado, do governo e dos partidos. O que se passa actualmente com os novos estatutos das Ordens é uma boa ilustração. O governo, o Parlamento e a maioria dos partidos pretendem aprovar um novo regime legal que, no essencial, se traduz pelo aumento dos poderes do Governo, pelo reforço das capacidades de interferência dos poderes políticos na vida das associações e pelo enfraquecimento da independência das Ordens. Este Governo e, curiosamente, a maioria dos partidos da oposição vivem mal com a sociedade civil forte, com as associações mais robustas e com as instituições privadas mais livres.
O Estado português tem enormes dificuldades em reconhecer e valorizar o papel da isenção, isto é, o contributo que podem dar, para os processos de decisão, as organizações de carácter científico, técnico e até cultural capazes de juízos isentos, ou seja, sem terem interesses directos nos planos em causa ou nos projectos em curso. Uma comunidade académica, um grupo de cientistas, uma associação de economistas, um conjunto de artistas ou uma empresa de juristas, sem interesses partidários ou económicos directos, podem dar contributos de muitíssimo valor para o bom funcionamento da sociedade. Por exemplo, todo o processo de preparação do novo aeroporto de Lisboa é, há pelo menos vinte ou trinta anos, um bom exemplo do despotismo, do favoritismo e do envolvimento de interesses. Consta que foram várias as opiniões e muitos os estudos encomendados, o que garantiria a isenção dos procedimentos e das escolhas. Acontece que os estudos e as opiniões adquiridos pelo Estado eram aquelas que o Estado pagava bem com o fim de ilustrar o que pretendia. Várias instituições mudaram de opinião pela simples razão de que o Governo também tinha mudado, de partido ou de opinião. A localização do aeroporto ou dos aeroportos, o número de pistas, a distância à capital, os meios de transporte indispensáveis e a dimensão das infra-estruturas e dos equipamentos mudaram conforme os interesses em causa e conduziram a que as organizações escolhidas se limitaram tantas vezes a documentar o que o Governo exigia.
O Estado português tem enormes dificuldades em formular opiniões fundamentadas, em tomar decisões cientificamente apoiadas, em julgar projectos complexos de qualquer espécie, das ciências às engenharias, das instituições às artes, da cultura à educação. A decisão política e partidária vive mal com a capacidade científica independente. Desvalorizando a ciência e a técnica, o Estado deixou fugir as competências e as qualificações que se retiraram para os sectores privados. Querendo controlar a vida, o Estado recheou-se de funcionários, mas perdeu gente qualificada. Não soube recompensar os melhores. Nem sequer respeitar as suas opiniões e os seus estudos. O Estado engordou, mas a sua cabeça diminuiu. É hoje um colossal défice de competência técnica e de sabedoria científica. Nem sequer possui a habilitação suficiente para julgar as escolhas dos interessados e as opiniões dos subcontratados.
O aeroporto de Lisboa arrasta-se há décadas, com as consequências da praxe: custos cada vez mais elevados, dependência de interesses alheios, perdas de oportunidade e de capacidade e derrotas diante da concorrência. O relançamento dos caminhos-de-ferro, o início do TGV e a decisão sobre a configuração eleita (a famigerada questão das “bitolas” …) atrasam-se de modo irreversível, com perdas de centenas de quilómetros e com ineficiências definitivas, com desperdício de material e de infra-estruturas. As urgentes construções de novos hospitais, de expansão dos portos, de escolas de dimensão e localização ajustadas às novas cidades, de novos serviços sociais de cuidados especiais continuados e paliativos e de tantos outros equipamentos e instituições são adiadas com terríveis consequências humanas, sociais e financeiras. Procure-se e investigue-se bem. As respostas serão parecidas. Falta inteligência ao Estado. O Governo não sabe apoiar-se em trabalho isento. O Estado detesta o contributo independente. Assim, democrático é, mas detestável, corrupto e ineficaz, também é.
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Público, 17.6.2023
1 comentário:
O Estado português é a expressão da boiada que o ocupa: ausência de valores e profusão de interesses.
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