É um dos mais misteriosos problemas da vida nacional: a permanente degradação da justiça. Quais são as verdadeiras causas deste estado de coisas? A política? As leis? As magistraturas? Os orçamentos? A sociedade? Os interesses? As faculdades de direito? Nenhum diagnóstico parece completo. Mas não há dúvidas de que a evolução, ao longo das últimas décadas, tem sido negativa. A justiça portuguesa teve dificuldades em adaptar-se a tudo o que de importante aconteceu. À democracia. Aos direitos dos cidadãos. À economia de mercado. À União Europeia. À globalização. Ao digital. E à liberdade de informação. Na verdade, ficou para trás e foi-se atrasando.
Só num aspecto os diagnósticos são convergentes: a situação é difícil ou grave. Uns acentuam os interesses das magistraturas. Outros sublinham as pressões dos poderosos da política, da economia, dos sindicatos e das instituições. Alguns garantem que as responsabilidades são dos partidos políticos, do legislador e do Ministério. Enquanto outros apontam para a venalidade dos magistrados e a tibieza perante as solicitações dos bandidos. Mas há ainda, finalmente, quem garanta que o essencial se deve ao espírito jurídico nacional, ao formalismo das tradições portuguesas e ao conservadorismo do ensino do Direito. Quais são as verdadeiras causas? Mistério.
Não se conhecendo as causas, é difícil encontrar os remédios. Talvez seja esse o sentido de outro dos mais enigmáticos problemas da sociedade contemporânea: por que razão nenhum partido político, nenhum governo, nenhum Presidente da República, nenhum Conselho Superior da Magistratura Judicial ou do Ministério Público, nenhum Supremo Tribunal, nenhum Procurador-Geral e nenhum Sindicato tentou ou protagonizou um processo de reforma?
Entre os diagnósticos, há uns mais certeiros do que outros. Por exemplo, a falta de preparação das leis, dos magistrados, dos tribunais e das polícias para tratar do crime organizado e da alta criminalidade ligada à corrupção política e económica. Ou então, a tradição burocrática nacional a que se juntou o excesso de garantias de todo o sistema. Ou ainda, finalmente, o livre trânsito dos magistrados entre os tribunais, as empresas, os partidos e os cargos políticos. Tudo isso é possível. Mas não se trata realmente de respostas. São novas perguntas às quais é necessário responder.
Uma das grandes dificuldades reside no facto de que reformar a justiça pode matar a liberdade e a democracia. Como pode destruir a independência dos magistrados e dos tribunais, valores insubstituíveis. Reformar eficazmente a justiça, em democracia e garantindo a independência dos magistrados é a grande dificuldade, o dilema da política de reformas. A justiça tem um paralelo possível com as Forças Armadas. São ambas essenciais à liberdade. Mas o seu funcionamento não é ou é pouco democrático. As decisões não dependem do voto dos cidadãos e dos utentes. O princípio da eleição não é geralmente aceite nestas organizações. Nem poderia ser. Mas ambas estão submetidas a uma génese democrática que lhes dá legitimidade. Em poucas palavras, a justiça não é democrática, mas a democracia depende dela.
O Tribunal Constitucional revela-se incapaz de substituir os seus membros, o que fere a sua própria legitimidade. Com suspeitas fundadas, a distribuição de processos continua inquinada. Sucedem-se as avarias dos sistemas, com quebras de comunicação que podem durar horas ou dias. Aumentam, com ou sem greve, os atrasos de julgamentos e outros actos. Seria interessante que alguns políticos, jornalistas e académicos visitassem os tribunais, reparassem nas testemunhas que esperam horas, nos adiamentos dos processos e nos julgamentos que não se realizam sem que as testemunhas sejam informadas. Quem pensa nas centenas ou milhares de pessoas, arguidos, assistentes, testemunhas e advogados que perdem horas e dias à espera, a “meter” baixas nos seus empregos, a ter de voltar uma, duas e três vezes?
A duração, os incidentes, as perturbações e as decisões contraditórias e incompreensíveis dos grandes processos de políticos e poderosos, as famosas causas célebres, já não se explicam nem justificam, mas deixam a sensação e a certeza de que a justiça portuguesa está cativa, é desigual e foi capturada por interesses ilegítimos.
Será que os magistrados, os membros dos Conselhos Superiores, as associações judiciais e a Ordem dos Advogados não se dão conta do mal que se está a fazer aos portugueses, à democracia e à justiça? Será que não percebem que o que fazem agora garantirá, por décadas, a má reputação da justiça? E os governantes que se ocupam directamente da justiça, os deputados que têm o exclusivo de competências em matéria judicial e os altos funcionários judiciais não se dão conta dos danos que estão a ser infligidos à Justiça e à democracia? E os magistrados que não são cúmplices, que cumprem os seus deveres, que respeitam as declarações dos direitos humanos, esses magistrados não se dão conta que, sem culpa nem proveito, sofrem da má fama que o sistema e as autoridades lhes infligem e provocam?
Os magistrados têm evidentemente culpas e responsabilidades no estado em que a justiça se encontra. Mas não tenhamos dúvida de que há outros responsáveis com o mesmo grau de culpa ou maior ainda: o legislador e o poder executivo. E os órgãos superiores do sistema judicial que se entendem bem com este estado de coisas. A entrada e a saída da profissão, a porta giratória com a política e a economia pública e privada, assim como a vizinhança com entidades políticas e partidárias, ajudam a explicar a inércia e a atitude conservadora da magistratura, do legislador e do governo.
Quem poderá tomar a iniciativa de um movimento de reforma? Quem poderá iniciar um debate com sentido das realidades e eficiência? Que órgão de soberania, Presidente, Governo ou Parlamento poderia tomar a iniciativa de mandar elaborar um Livro Branco e um roteiro de reformas para a justiça? Que fundação privada, universidade ou academia poderia dar o sinal de partida para uma análise, um apuramento e um programa de reformas? Uma coisa é certa: aquilo com que sonham os antidemocratas e radicais de vária penugem, a “vassourada” ou a “barrela”, não é aconselhável. Além de que seria contraproducente: transformaria o caos democrático num caos autoritário, com sacrifício da liberdade e da democracia.
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Público, 1.4.2023
1 comentário:
O que permanece a alguém convém.
A justiça começou por ser confiada a 'homens bons', 'conselhos de anciãos', depositários de valores.
Sempre que passou a servir poderes se perverteu.
Entre nós, num tempo não democrático, às leis que serviam o poder sempre se procurava que garantissem o respeito pelo saber que as torna respeitáveis - o Direito.
A democracia trouxe o desarme de valores que serve poderes e o desrespeito pelo Direito que desacredita as leis.
Os agentes da justiça navegam essas águas, onde arbítrio e relaxe têm lugar.
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