sábado, 18 de março de 2023

Grande Angular - Pode acabar mal

Não é provável. Mas é possível. Isto pode acabar mal. O que é “isto”? O regime democrático, as liberdades públicas, a paz social e um razoável desenvolvimento. Mas sobretudo a democracia e a liberdade.

 

Poderá mesmo acabar mal? Não será demasiado pessimismo? Mais uma vez Cassandra? Ou os habituais Profetas da Desgraça?

 

É mesmo o caso. Pode acabar mal. Ainda há pouco, havia trunfos inesquecíveis. Há ou havia dinheiro e capital disponível. Não era português, nem privado. Era europeu. Mas havia. E era capital. Havia paz social. Nas ruas e nas empresas vivia-se um relativo conforto. Sem fortuna, nem exaltação. Mas alguma serenidade. O desemprego era baixo. Ou antes, não era alto. Tempos houve em que 6% era muito. Agora, já parece ser aceitável. O parlamento gozava de maioria absoluta, um dos mais formidáveis instrumentos de governo, um trunfo raro na história da democracia portuguesa. Era claro e indiscutível. O trunfo continua lá. Mas as dissensões dentro do partido do governo revelam tempestades para amanhã. E a desordem nos espíritos é má conselheira. Entretanto, da rua e da vida, vêm constantes rumores. Descontentes.

 

O primeiro ministro parece cansado. Não se sabe se é só isso ou se é incerteza quanto ao que há para fazer. Ou vontade de ir embora. A sucessão de demissões deixou má impressão no país. Fica-se com a sensação de que os governantes não sabem que fazer, não têm competência ou não se interessam. A história da TAP, do aeroporto, dos comboios, do TGV e dos transportes públicos é reveladora desta incapacidade. As únicas coisas em que o governo parece especialista são a distribuição de subsídios e a encomenda de estudos inúteis.

 

Que aconteceu para que as escolas e os professores estejam em crise como raramente se viu? Que aconteceu para que os hospitais, as maternidades, as urgências, os médicos e os enfermeiros, para já não falar dos doentes, se encontrem neste estado? Que aconteceu para que surjam, nas áreas metropolitanas, novas barracas, mais sem abrigo e mais droga nas ruas? Que se está a passar com as políticas de população, quando a emigração continua e a imigração aumenta, com os incentivos que o governo dá ao mercado negro de trabalhadores, ao tráfico de imigrantes e ao trabalho ilegal? Que continua a passar-se com a justiça, incapaz de resolver os casos difíceis de poderosos, de afortunados e de políticos? Que se passou com o mercado da habitação que vive na desordem e revela a sua maior violência social, sem que as autoridades tenham a noção do que deve ser feito, a não ser acudir aos miseráveis?

O que se passou ou está a passar na Armada, na Madeira e relativamente ao NRP Mondego, parece ser de gravidade extrema. Poderia ser apenas um caso isolado ou um incidente episódico sem dia seguinte, mas tudo leva a crer que seja sintoma de mal-estar, de perda de confiança e de disciplina, de falha na coesão na Armada e nas Forças Armadas. Ou até de abismo entre o poder político e as Forças Armadas. Até agora, ainda não houve esclarecimento. Os órgãos de poder político esforçam-se por disfarçar. Após tantos sinais de inquietação, já seria tempo de ver o poder político preocupar-se com as Forças Armadas: não só com as questões habituais, o equipamento, a organização, os efectivos, as capacidades e os orçamentos, mas também com as questões mais importantes, o clima geral no seu interior, a relação das Forças Armadas com a sociedade e com o Estado. Era tão bom que os políticos percebessem de uma vez por todas que, sem Forças Armadas, não há democracia, nem liberdade, nem paz social!

 

A Igreja católica portuguesa, uma das mais importantes instituições nacionais, acaba de se afundar numa das suas piores crises. Por sua obra e graça! Os católicos vão ficar a perder, não se sabe por quanto tempo. Os portugueses também. A crise actual da Igreja é provavelmente a mais grave do último século. Com uma característica: não tem origem em ataques feitos a partir do exterior, da política, dos costumes e de crenças concorrentes, mas sim a partir de dentro. A Igreja, a sua hierarquia e os seus sacerdotes só se podem queixar de si próprios. A Igreja pecou por altivez e presunção. 

 

Esta crise vai ter consequências na sociedade. Crise de confiança, tanto por parte da população em geral, como do lado dos seus crentes. A dúvida e a incerteza perante a Igreja são sinais de desconfiança. Nas instituições da sociedade civil, nas instâncias do poder político, nas regras de direito e no funcionamento da Justiça. Apesar disso tudo, é difícil detectar um esforço de correcção dentro da Igreja portuguesa. Mas quase só é visível a tentativa de encobrimento, de subvalorização, de menoridade e de complacência.

 

De fora, do mundo, não chegam boas notícias. Guerra sem fim à vista. Tensão política e militar internacional. Nova crise financeira e bancária. Incerteza sanitária. Novas crises de imigração. Sérias perturbações sociais em vários países europeus. Crescimento das políticas radicais. Para tudo isto, em Portugal, era necessária uma política segura, uma democracia sólida e instituições estáveis. Além de confiança da população nos seus dirigentes. O que não parece ser o caso.

 

O Governo está a passar um mau bocado. Portugal e os portugueses também. Era bom estarmos atentos. O pior pode acontecer. Há instituições, mas são frágeis. Há recursos financeiros, mas estão a ser distribuídos e um dia acabam. Há defensores das liberdades, mas também há desconfiança e afastamento. Há partidos políticos democráticos, mas também há os que o não são e ameaçam a democracia. Há protesto político, mas o descontentamento social, sem conotação partidária, exprime-se nas ruas. Os partidos estão presentes nos meios mais agitados, mas nas escolas, nos hospitais, no Serviço Nacional de Saúde, nos transportes públicos e nos supermercados é crescente a convergência entre esquerda e direita, a ponto de se poder dizer que o protesto social é pouco partidário. O regime e o sistema de governo parecem estar a perder talento, competência e capacidade para tratar das questões de fundo e das crises presentes.

 

Há um mau ambiente social evidente. Muito mais perigoso do que a estridência política e a berraria de candidatos a salvar a pátria.  O que é realmente ameaçador é o mau ambiente, essa espécie de burburinho permanente, o descontentamento da população, as dificuldades em que vivem os cidadãos. O pior pode acontecer. Não é provável. Mas pode.

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Público, 18.3.2023

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