É uma ilusão pensar que o Estado é, em Portugal, enorme, pesado e forte. Talvez seja enorme. Pesado é certamente. Forte é que não é seguramente. Alvo de predadores. Isco de caçadores. Pretexto de manobradores. E pedaço para gananciosos. Qualquer dos epítetos lhe serve. Forte é que não. Instrumento de poderosos. Volúpia de minorias. Burocracia de insaciáveis. Ferramenta dos mais fortes. Protecção dos estabelecidos. Tudo lhe serve. Forte é que não. Volúpia dos democratas. Lascívia dos autoritários. Sonho dos ditadores. E encanto dos Republicanos. Qualquer imagem lhe fica bem. Forte é que não. Cão de fila dos ricos. Esperança dos fracos. Paraíso dos racionalistas. Sonho dos fantasiosos. Também estes rótulos se lhe aplicam. Forte é que não.
Não tenhamos dúvidas: o governo, os sucessivos governos destruíram a força do Estado, decapitaram-no, amordaçaram-no, liquidaram a sua isenção e definharam a sua inteligência. Além de terem atrofiado, activa ou passivamente, a sua mais nobre função, a da administração da Justiça.
Há em Portugal um clima de cortar à faca, aquele onde se sente a corrupção, onde se vive da cunha, onde se julga que a democracia é o poder discricionário de quem tem os votos. Os últimos episódios de nomeação, demissão e substituição apressada de ministros, secretários de Estado, assessores, conselheiros, Altos funcionários, directores e administradores, são reveladores de desorientação. Ainda estamos longe da “noite das facas longas”, mas o ambiente é de terror. Só não há mais fugitivos, porque todos sabem, ou esperam, que a justiça não funcione. Como tem sido o caso.
É longo o catálogo de episódios, dramáticos uns, picarescos outros, que nos últimos meses e anos ilustram este ambiente pouco sadio para a democracia. Entre os mais recentes, as festividades das Jornadas da Juventude têm revelado graus de incompetência e de subserviência inimagináveis. Jacobinos de quatro costados, beatos de primeira água e ateus virtuosos parecem ter combinado entre si a elaboração deste auto burlesco, revelador de imprevidência e oportunismo. E quem pior se portou foram os poderes públicos.
Em todas as grandes obras e empresas que, recentemente, têm estado nas primeiras páginas, nota-se a persistência dos mesmos defeitos. Falta de capacidade científica do Estado. Incapacidade de previsão e planeamento. Emaranhamento de interesses legítimos ou não.
Há casos que serão um dia capítulos dos manuais de história, dos compêndios de gestão, dos tratados de administração, dos dicionários de práticas nocivas e eventualmente de súmulas de casos de justiça. O novo aeroporto de Lisboa é o exemplo mais importante. Adiado, atrasado e refeito durante décadas, foi objecto, pelas mesmas pessoas, pelos mesmos gabinetes, pelos mesmos governantes ou por governantes dos mesmos partidos, de decisões contrárias e contraditórias à distância de décadas, de anos e de meses. O futuro aeroporto de Lisboa já teve seis localizações, três das quais definitivas. Regulamente, volta ao princípio, à casa de partida. É obsceno o que já se gastou, disse e fez para o aeroporto de Lisboa. Há décadas que o poder político não decide. Que os técnicos do Estado não conseguem prever e avaliar. Que as empresas que trabalham para o Estado ganham para fazer o que lhes mandam, em vez de fazer o que devem: planear, projectar e antecipar.
Se este é o caso mais confrangedor, de outros reza a história de que não nos cansamos de ouvir falar. Porque estão sempre aí. O SIRESP, sistema de comunicações do Estado é outro exemplo que nos enfeitiça. Novos contratos, novas indemnizações, novas falhas e novos sócios: há matéria para sagas perpétuas. A linha de TGV e a nova rede de caminho de ferro estão também aí, há décadas, à espera, sempre prontas a recomeçar e esquecer.
A TAP está no quadro de honra da incompetência, da má gestão, do oportunismo e provavelmente da corrupção. Sempre com o governo no centro das decisões. Sabemos o que aconteceu com outras grandes empresas de serviços e de indústria, nos sectores das máquinas, das telecomunicações, da energia, dos cimentos e dos combustíveis. O país perdeu importantes centros de decisão. Os governos não se emendaram. E o denominador comum destas decisões parece ter sido sempre a falta de competência técnica e de capacidade científica do governo.
O Estado dispensou gradualmente centenas ou milhares de técnicos competentes e de especialistas qualificados, trocando todos por pessoal burocrático, com poderes para tratar das vidas dos outros e da sua, mas sem conhecimentos para avaliar e prever. Aos técnicos, aos cientistas, às pessoas qualificadas que dariam à decisão política a certeza e o rigor necessários ao bem público, o Governo prefere assessores, conselheiros, especialistas de imagem, técnicos de comunicação e encarregados de imprensa que compram e vendem o que quer que seja, pessoas certas, ideias erradas, projectos verdadeiros, mentiras e verdades.
Este Estado vive sem instituições autónomas, pois tenta controlar tanto quanto possível, deixando que a auto-regulação seja cada vez mais uma figura de estilo. A actual discussão sobre as novas leis que regulam as Ordens profissionais é mais um sinal inequívoco. A pretexto de lutar contra o corporativismo, bandeira que fica sempre bem, o Governo pretende simplesmente mandar nas Ordens, regular os reguladores e ditar as regras. As suas novas leis para as Ordens profissionais são quase um mandato de captura!
Ainda a sofrer de décadas de pretenso igualitarismo, os vencimentos dos quadros superiores do Estado e dos sectores públicos são ridículos, verdadeiros incentivos à emigração para o estrangeiro, para o sector privado e para a criação de escritórios e empresas que acabam por desempenhar as tarefas de que o Estado foi despojado, mas a preços verdadeiramente especulativos. Submetidos à direcção política tantas vezes incompetente, obrigados a cumprir regras absurdas, os técnicos e os cientistas mais capazes não são motivados e não se sentem atraídos pela esfera pública.
Mas não se trata apenas, nem sobretudo, do problema dos vencimentos dos quadros superiores do Estado. É também o facto de assim se poder recorrer a empresas de negócios exteriores. E ainda o pormenor de o poder político decidir sozinho, sem o rigor da ciência e da técnica. Presa de interesses económicos e políticos, o Estado português não tem capacidade científica. Não tem inteligência. Não tem isenção. Não tem sabedoria.
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Público, 11.2.2023
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