sábado, 3 de dezembro de 2022

Grande Angular - A revisão inútil

Uma revisão constitucional é coisa séria. Implica uma transformação de elementos da arquitectura constitucional do país e do Estado. É na Constituição que se definem as funções da soberania e da legitimidade. Entre os seus principais capítulos, contam-se o sistema político, a representação e a soma de direitos, deveres e garantias dos cidadãos. Rever este texto é uma função nobre do legislador, pelo que se não deve abusar da sua frequência. Nem deveria ser automático fazer uma revisão periódica: seria mais interessante que se fizesse só quando há matéria importante e quando as forças políticas têm qualquer coisa de sério a corrigir ou acrescentar. E sobretudo quando uma parte considerável do eleitorado sabe o que está em causa.

 

Já houve várias revisões, umas mais importantes do que outras. Notem-se as que alteraram profundamente o sistema político, económico e social criado pela revolução e inscrito no primeiro texto de 1976. De muito menor dimensão, foram as que actualizaram certas normas relativas à participação de Portugal nas instituições europeias.

 

Seria possível, nesta legislatura, pensar numa revisão com significado para o futuro do país? Talvez. Desde que, evidentemente, os partidos, as instituições e a população estejam interessados ou sensibilizados. Os temas poderiam ser interessantes. Por exemplo, a estrutura do Estado merece atenção. Exige sobretudo que se acabe com o nó cego da regionalização que se arrasta há décadas.

 

Outra necessidade, urgente, é a de rever a Justiça, o mais deficiente sector da vida pública. A sua reforma exige revisão constitucional, dado o especial estatuto dos magistrados e tendo em conta a natureza sensível do processo: estão em causa a independência dos juízes e a defesa dos cidadãos, temas que dificilmente podem ser reformados sem intervenção constitucional.

 

Outro exemplo é o do sistema eleitoral que já revelou as suas insuficiências, ao mesmo tempo que consagra a partidocracia: também este mecanismo essencial da representação democrática e de garantia de legitimidade poderia ser revisto na Constituição. Mas parece não haver vontade nem ideia, a não ser uns remendos que um ou outro partido poderiam facilitar.

 

Também seria interessante a introdução de um dispositivo que obrigasse que alguns actos políticos (nomeações de governantes, embaixadores, chefes militares, directores gerais, altos funcionários e magistrados) fossem apreciados pelo Parlamento, nomeadamente através da audição parlamentar. Sem a qual a nomeação não teria validade. Eis um procedimento que altera as relações entre órgãos de soberania: já se compreenderia que tivesse de esperar por uma revisão. Mas também não se trata do caso: a maioria dos partidos não quer essa alteração das regras.

 

O que agora se pretende fazer à Constituição é mais uma vez uma actualização demagógica e oportunista. Todos querem aumentar e alargar os sistemas de direitos e benefícios de que usufruem grupos de cidadãos. Todos os partidos querem dar mais e distribuir mais: educação, saúde, alimentação, segurança social, higiene, qualidade de vida, água, clima, transportes, habitação, vida animal, floresta… Todos estes temas deveriam ser tratados em programas de governo e nada têm a ver com a Constituição.

 

Verdade é que este espírito prolonga a situação actual: o texto da Constituição em vigor é um desastre político, uma amálgama jurídica, uma aberração estética e um pesadelo literário. Os partidos políticos portugueses vivem obcecados com as conquistas definitivas. Tudo o que está feito fica para sempre, é eterno, nunca ninguém mais poderá mudar! É uma concepção tipicamente autoritária, quase totalitária. O que hoje é verdade sê-lo-á para sempre. Assim, o que está na Constituição é imutável, o Parlamento, o Governo e sobretudo o eleitorado nada podem fazer.

 

Outra obsessão nacional é a de que tudo deve ter dignidade constitucional. Todos os direitos, garantias e benefícios sociais. As medidas de política agrícola, industrial ou climática. A organização da saúde, da educação e da habitação. O que na realidade os partidos gostariam seria de verter para a constituição a totalidade dos seus programas políticos, centenas de páginas de proclamações e promessas… 

 

Segundo a tradição, o que pode ser tratado nas leis, na Administração e na vida de todos os dias deve estar estipulado na Constituição. Por isso, estes projectos de revisão são somatórios de programas eleitorais, compêndios de administração de interesses e tratados de direitos clientelares. Por isso, são quase infinitos os direitos de populações particulares: mulheres, crianças, jovens, velhos, doentes, deficientes, refugiados, imigrantes, emigrantes, trabalhadores, estrangeiros e desempregados. Ora, em quase todos estes casos, tais direitos deveriam depender da lei comum. A sua mudança seria por via legal. A Constituição não deveria ser tida nem achada. Por outro lado, são direitos de todos os cidadãos, não de grupos especiais. Por que diabo deverão os trabalhadores, os estrangeiros, os jovens ou as mulheres ter direitos especiais e não direitos de todos? Por que carga de água deverá haver direitos especiais para sindicalistas, jornalistas, proprietários, empresários e emigrantes?

 

A revisão ora iniciada é uma operação ridícula. Inútil e prejudicial. Faz-se porque os partidos querem fazer prova de vida e não querem ser acusados de não responder às provocações do partido do Chega. Este último insiste nas suas obsessões habituais, mas o que realmente deseja é dar nas vistas e incomodar os partidos da direita. O que, dada a debilidade destes últimos, consegue sempre. Mas agora também conseguiu incomodar o PS, que dá cobertura a uma revisão inútil. E que confere legitimidade às elucubrações do partido do Chega.

 

Nas últimas eleições, os partidos não fizeram campanha anunciando a sua vontade de proceder a uma revisão constitucional. Não disseram o que queriam mudar ou conservar na Constituição. Não legitimaram as suas propostas de revisão. Não se propuseram debater publicamente o conteúdo da revisão. Não quiseram saber o que pensavam as instituições, as autarquias, a sociedade civil, as empresas, os sindicatos, as ordens e as associações em geral. Não estimularam, com as suas propostas, um debate público e informado. A maior parte dos deputados eleitos não sabia sequer que os seus partidos iriam apresentar uma proposta de revisão. Esta revisão é uma armadilha autoritária, não democrática, de medíocre improviso e de grosseiro expediente.

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Público, 2.12.2022

 

1 comentário:

Jose disse...

Ainda não sei do que se trata, mas sei o bastante dos tratantes para só esperar mais uns floreados de conquistas de direitos a sustentar com esmolas e impostos, taxas e taxinhas.