Estamos a viver novos momentos importantes para a vida política nacional e para a definição de direitos dos cidadãos. Três fenómenos despertaram o debate e excitaram as mentes. Por um lado, os “rankings” das escolas. Por outro, a crise do Serviço Nacional de Saúde e os desastres das urgências. Finalmente, a decisão do Ministério Público de Famalicão relativamente aos alunos da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento. No que precede, o denominador é o confronto entre o público e o privado, entre a Administração Pública e a sociedade civil e entre o Estado e os cidadãos. Ninguém duvida da importância decisiva desta discussão. Do seu resultado e do quadro político que será desenhado, depende muito da nossa vida colectiva.
Os “rankings” das escolas confirmaram, em quase todos os critérios, o avanço das escolas privadas relativamente às públicas. O que é de esperar e há muito se sabe. As escolas privadas recrutam alunos em meios geralmente privilegiados ou afortunados, têm mais dinheiro, mais propinas, mais professores, melhores edifícios, menos degradação de equipamentos, mais actividades culturais, mais disciplina e mais envolvimento dos pais. O que não impede que haja frequentemente, nas escolas públicas, alunos excelentes, professores dos melhores e participação parental qualificada. Ou haja, entre as particulares, abcessos indecorosos. Mas a média é, previsivelmente, favorável às escolas privadas. É por isso que os interesses ligados ao sector público, ao Estado e aos sindicatos de professores tudo fizeram para evitar a realização e a publicação dos “rankings”. Felizmente, perderam. Podemos hoje consultar aqueles dados e fazer as comparações que quisermos, assim como detectar vantagens e defeitos em certas escolas. Sabe-se que os “rankings” não dizem tudo, que podem ser enviesados, que distorcem certos aspectos da realidade, que são um incentivo à comparação fácil e que ajudam a ocultar fenómenos de desigualdade social. Certo. Mas também se sabe que são bons instrumentos de medida e avaliação à disposição das famílias, dos profissionais e dos cidadãos em geral.
É absolutamente normal que o sistema privado, com todos os seus privilégios, tenha melhores resultados. O que deveria ser um incentivo para as autoridades do sistema público aprenderem receitas de êxito, como sejam o financiamento, a estabilidade docente, a remuneração dos professores, a disciplina escolar, a actividade cultural e a autoridade pedagógica. Este incentivo contrasta, evidentemente, com a atitude ridícula de tanta gente que, perante a superioridade dos resultados, propõe que se acabe com o ensino privado e se escondam os “rankings”. Se a escola pública é um dos principais meios de luta contra a desigualdade social, então deveremos empenhar-nos em conhecer, criticar e valorizar todo o sistema, em vez de esconder os defeitos, proibir as comparações e eliminar os que fazem melhor.
Curioso é ver atitudes similares relativamente à crise actual do SNS. As últimas semanas foram um desespero. Além das habituais esperas de meses ou anos, tivemos agora o colapso das urgências de obstetrícia e das maternidades. Mais uma vez, as autoridades e o fantasmagórico ministério garantem que nunca houve tanto dinheiro, que os investimentos crescem como nunca e que há mais médicos e enfermeiros do que jamais se pensou… Ao que se segue, evidentemente, um ataque à medicina privada, aos seguros de saúde, à livre escolha de médico, à Ordem dos Médicos e aos profissionais das instituições privadas. Novamente, em vez de olhar para as instituições privadas e delas retirar o melhor, as autoridades culpam-nas e responsabilizam-nas pela sua própria crise de gestão, de disciplina e de justa remuneração de médicos e enfermeiros. Sabemos que, no sistema de saúde pública, há unidades hospitalares excelentes e que nos hospitais públicos se encontram por vezes os melhores médicos, equipamentos e cuidados. Mas parece cada vez mais difícil fazer coexistir os dois sistemas de saúde. Com demasiada frequência, os defensores da saúde pública pensam sobretudo em destruir a saúde privada, não em ter melhor gestão, recompensar os seus profissionais, garantir condições de trabalho decentes e atender os cidadãos de maneira competente, humana e eficiente.
Finalmente, o caso dos “pais de Famalicão”, a culminar, para já, na absurda proposta do Ministério Público de retirar aos pais o poder paternal, durante as horas de aulas, substituindo-os pelos órgãos da escola. Parece estarmos a viver em comunas chinesas ou em sovkozes soviéticos. Ou em kibutzim israelitas no seu período totalitário. Como se os alunos estivessem a ser espancados pelos pais alcoólicos! Como se estes fossem monstruosas criaturas capazes das piores violências sobre os seus filhos! Com efeito, o Ministério Público alega proteger os jovens contra os maus tratos que os pais lhes querem infligir! Estas violências consistiriam nos obstáculos criados pelos pais ao acesso de seus filhos às luzes das doutrinas democráticas e outras impostas pela escola.
É difícil ver tão absoluta asneira, tão despótico comportamento! Espera-se ainda pela decisão judicial e pelas disposições ministeriais, mas neste processo já se foi evidentemente longe de mais. Novamente, o Estado contra os privados, contra as famílias e contra os cidadãos.
Todavia, as famílias de Famalicão e de todo o país têm de respeitar o currículo nacional e acatar as regras próprias da escolaridade obrigatória. Há formas de lutar pela reforma legislativa e pela objecção de consciência por motivos ponderados (familiares, religiosos, culturais, etc.). O mero desrespeito pela lei não é aceitável. O problema é que esta lei e o seu conteúdo constituem puro contrabando ideológico e uma maneira de promover o despotismo cultural na moda. Mas, infelizmente, fazem parte das regras legais.
A objecção à lei desta famigerada disciplina de Cidadania é tão legítima quanto a objecção à criminalização do aborto, à proibição do suicídio assistido, ao uso da Burka no espaço público, à tourada ou ao ritual de sangrar animais, assim como tantos outros dispositivos aceites por uns e recusados por outros. Há leis “democráticas” injustas, infames e iníquas: é dever de muitos lutar contra elas. Mas por meios legais. E sobretudo na tentativa de equilibrar interesses públicos e privados. Esta legislatura tem as condições ideais para fazer esse equilíbrio. Mas parece que há quem as queira desperdiçar.
Público, 9.7.2022
2 comentários:
É sempre um prazer ler bom senso, no entanto no caso inenarrável de Famalicão a desobediência civil foi a única saida possível como consequência das repetidas posições que o Estado foi tendo.
Tivesse havido bom senso a decisão do Conselho de turma nunca teria sido revogada, tivesse havido bom senso e o Estado não teria recorrido da decisão do tribunal que encerrava o assunto, tivesse havido bom senso e o responsável por este triste episódio nunca teria sido promovido a ministro.
Quando o Estado se porta assim legítima a desobediência civil.
A margem de 'personalização' que pode ser introduzida por um professor numa disciplina de cidadania que não era mera informação sobre organização política e regras de acção pública, haveria de exigir-se que fossem gravadas, e que aos educadores - os pais - fosse dado acesso a essas gravações.
Tanto bastaria para que a propaganda do corretês fosse contida, contrariada ou impugnada.
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