O caso tem vindo animar os debates públicos e a má-língua. António Costa, Primeiro-ministro, pediu a António Costa Silva, professor e gestor, que o ajude a prever o futuro pós pandemia e a traçar um plano a longo prazo para o país. Muitos estranharam. Alguns contestaram. Outros detestaram. Uns tantos gostaram. Não poucos calaram. Parece um fait divers, mas não é. É o sistema de governo que está em causa.
O Primeiro-ministro tem o direito de convidar quem julgue que lhe é útil para o ajudar a pensar. Tem o direito de se aconselhar com quem quiser. Assim como de pedir apoio a amigos, o que faz com frequência e proveito. Recorrer a spin doctors é seu privilégio.
Se, ao seu governo, falta ponderação para prever e inteligência para reflectir, é avisado que recorra ao exterior, à sociedade civil, à academia e às empresas. Em certo sentido, é melhor fazê-lo do que fechar-se em copas.
Ainda por cima, é verdade que precisa de conselho. Os seus governos parecem-se com reuniões de técnicos. Não que seja mau ser técnico. O problema é que não é isso que se pede a um político com responsabilidades perante o eleitorado e as instituições. Ora, os ministros nunca foram tão ajudantes como agora. E os secretários de Estado tão adjuntos de ajudantes. Nem nos tempos de Cavaco Silva, que cunhou a expressão.
É provável que o Primeiro-ministro se dê mal com o êxito de alguns dos seus ministros mais capazes. Acontece… Daí não vem mal ao mundo. A não ser que se ponha em causa o sistema de governo. Que é o que está a acontecer.
Para a democracia, o sistema de governo é tão importante quanto as políticas. Há mesmo quem diga que são os procedimentos que preservam a democracia. Há razão nisso. Basta pensar no que seria uma boa política, mas sem liberdade nem democracia. É aliás essa uma das grandes ambições dos candidatos a ditador. Ou então, pensemos numa irrepreensível democracia, respeitadora dos direitos e do direito, mas com más políticas e muita corrupção.
A prática dos governantes pode variar muito. Recorde-se, por exemplo, a ideia que Salazar tinha dos conselhos de ministros, a que presidia mas quase nunca reunia. Dizia, sem ironia, que “dois já fazem um conselho”! Nas décadas que levamos de democracia, já vimos, com o mesmo sistema, Primeiros-ministros muito diferentes. Compare-se Soares com Cavaco ou Sócrates com Passos Coelho.
António Costa pode também ter o seu estilo. Mas tem de respeitar os seus ministros e as suas competências. Ao requisitar os serviços de uma pessoa exterior ao governo, mesmo se excepcional e talentoso, como parece ser o caso, o Primeiro-ministro está dizer aos seus ministros: “Ocupem-se das bagatelas, do trivial e do curto prazo, porque do essencial vou ocupar-me eu e os meus conselheiros”!
Com a excepção de um punhado de ministros, o governo está reduzido a directores de serviços. Ou gestores de produto. Mais de metade do governo nunca se exprimiu publicamente sobre o que quer que seja, o mundo, a paz, a Europa, a sociedade ou o Estado. Pelo menos a dois terços dos ministros nunca se lhes ouviu uma só palavra sobre a política, a economia ou a cultura! Já sobre os seus pelouros, os seus planos, as suas estatísticas e as suas portarias, parecem papagaios com mestrado, falam, falam, parecem o Diário da República.
Descobrimos um primeiro-ministro estranho, com receio da importância dos seus ministros! Quando tudo fazia crer no contrário, que António Costa tinha orgulho em políticos capazes e em pares de elevado calibre intelectual, começou a perceber-se que ele gosta é de políticos reduzidos a técnicos. A começar pela extraordinária nomeação de quatro ministros de Estado, categoria raríssima que vulgarizou, a fim de despromover os que já eram e não criar ilusões aos que passavam a ser. Quatro ministros de Estado! Parece um país sul-americano!
É verdade que os partidos da oposição ou qualquer outra instituição pública ou política pode simplesmente recusar, com razão, ter conversas, negociações e discussões com um “enviado” informal do Primeiro-ministro. Mas isso é mesmo só espuma. Mais sério e mais grave é o facto de se reduzir o Conselho de Ministros a uma assembleia de ajudantes.
Ao nomear, sem necessidade, o maior número de membros de governo da história do país, António Costa diminuiu o seu estatuto. Ao nomear quatro ministros de Estado, retirou força a vários dos seus ministros, justamente os mais competentes. Ao recorrer a colegas e a “melhores amigos”, para executar tarefas tipicamente de governo, as de planeamento e de previsão, o Primeiro-ministro está a fazer uma reforma estrutural furtiva. Nem sequer se pode dizer que esteja a promover o partido para além do sensato. Não. Desta vez, até o seu partido está a ser afastado do exercício de funções políticas e constitucionais.
Que é feito dos ministros com competências de planeamento? Dos ministérios com capacidades de previsão? Dos organismos de Estado com funções de reflexão estratégica? Das universidades que poderiam dar um excepcional contributo? Do conselho Económico e Social? A associação crescente de auditores, consultores, fundações e escritórios de advogados ao trabalho do governo e à elaboração legislativa é um sinal perigoso: é a lenta formação de um governo oculto, com a consequência previsível da perda de responsabilidade política e democrática. Pior ainda: é criação de um Estado frágil de fácil captura.
A decapitação científica do Estado tem vindo a ser concretizada há anos. As capacidades técnicas do Estado estão há muito a ser desnatadas. Os melhores, os mais independentes, os mais rigorosos, em qualquer campo, na educação e na engenharia, nas obras públicas e na saúde, na energia e nos transportes, vão-se desligando do Estão e associando cada vez mais ao privado.
A falta de fundamentos técnicos e científicos adequados em tantas decisões políticas (como foram os casos conhecidos do aeroporto, dos caminhos de ferro, de várias barragens, de muitas auto-estradas…) esteve evidente em tantas decisões erradas, corrigidas e abandonadas. A esta pobreza, acrescenta-se a ideia de que os governos podem fazer tudo o que quiserem. É a concepção da Administração Pública como mera burocracia e do governo como génio científico e político.
É um mau sinal dos tempos que correm: um Estado pesado, mas intelectualmente fraco e cientificamente débil.
Público, 7.6.2020
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