À pergunta “de que tem mais saudades?”, respondeu “do amor”. Ou então, “da minha liberdade”! Ou ainda, “dos meus amigos”.
Estes são os tempos em que a mulher não pode abraçar o marido que vai morrer. A família não está autorizada a enterrar o avô. O homem que vai trabalhar não se pode despedir da mulher. Os filhos não podem visitar a mãe. O namorado está interdito de beijar a namorada. A mãe não pode acariciar o filho. Os amigos não jantam juntos. Os irmãos estão proibidos de se encontrar. Os fiéis não rezam aos seus deuses. Os Cristãos não estão juntos pela Páscoa. Os Muçulmanos não vão à Mesquita. Os Judeus não frequentam a Sinagoga.
Estes são os dias em que os trabalhadores estão condenados à paragem forçada. As máquinas imóveis nas fábricas. Os aviões ficam alinhados na pista. Os carros eléctricos andam vazios. O mercado não tem clientes, nem vendedores. Os comércios não têm produtos para os quais, de qualquer maneira, não há compradores. Os cinemas não exibem filmes. O restaurante não serve refeições. O quiosque não vende jornais. Os hotéis não recebem turistas. A excursão foi adiada. As salas de museus encontram-se vazias. As redacções dos jornais estão fechadas.
Vivemos um presente em que os velhos não jogam a sueca no Jardim. Os fãs não assistem ao desafio de futebol. O bando não vai à noite beber copos e ouvir música. As velhotas não fazem tricô à beira da porta, na má-língua. Os professores não ensinam diante dos seus alunos. Os estudantes não ouvem aulas. As filarmónicas não tocam. Os coros não cantam. As equipas não jogam. O médico não dorme em casa. A enfermeira não janta com a família. Os velhos, nos lares, fogem uns dos outros.
Este é o terror. Que tentamos esconder. Com a televisão e as séries. Com os computadores e os telemóveis. A arranjar estantes. A arrumar roupa. A ler e reler livros. A escrever. A organizar correspondência. A idealizar “power points” e trabalhos de computador. A arranjar as fotografias de família. A reparar máquinas. A cozer roupa. A limpar a casa. A dormir. A descansar. É o terror que queremos disfarçar com tarefas e projectos adiados.
É este desastre que tentamos perceber. Ou explicar. Mas apenas conseguimos encontrar o valor humano da nossa vida. O valor do presente. Para todos nós, para quase todos nós, o terror é história. O que vivemos e nos preparamos para viver não tem termos de comparação. Nem é a peste ou a cólera. Nem a varíola ou o sarampo. Ou a tuberculose e o AIDS. Não que essas sejam ou tenham sido mais brandas, talvez não tenham sido. Mas foram em tempo mais largo e espaço menor. Foram mais lentas. As notícias e os vírus demoravam anos a espalhar-se. E também não é a gripe espanhola nem a asiática, que, para todos nós, são história e nunca pensámos que poderiam ser actualidade. Nem ocorreu que poderiam voltar a ser verdade. Mataram vidas, milhares ou milhões. Mas não ameaçavam a vida.
É terror, não é guerra, não há inimigo a abater, não há adversário a estudar e a derrubar. Não é crise económica, com indicadores, subsídios, indemnizações, esmolas, assistência e direitos sociais. Não é crise com manipuladores dos preços e especuladores das finanças. Não é conflito internacional com exércitos, provocações, inimigos e batalhas. Não é nada do que conhecemos. As chamadas grandes guerras mundiais, a primeira e a segunda, são história. As gripes e as pestes são história. As crises do petróleo, a descolonização, as invasões e as guerras civis na antiga Jugoslávia, no Próximo Oriente e na Ásia do Sudeste já são história, foram reais e terríveis, mas não são comparáveis ao que temos aí!
Aqui, agora, ninguém ataca ninguém. Ninguém abate ninguém, mas são homens e mulheres abatidos. As vítimas não são escolhidas. Os vírus não matam de preferência brancos, negros, indianos ou índios. Não perguntam a religião nem o partido político. Não querem saber que línguas falam as vítimas. O que não quer dizer que os países pobres não sejam mais vulneráveis, que os Estados sem estruturas não sejam mais frágeis e que as nações mais povoadas e menos desenvolvidas não sejam mais fracas. E a verdade é que, por enquanto, os países mais poderosos do mundo são os que actualmente exibem os piores indicadores. Mas não sabemos se os países mais frágeis e mais pobres da Ásia, de África ou da América Latina não venham a ter crises iguais ou piores.
Parece história, mas história não é. É hoje. Vivemos uma crise no presente e no futuro, sem saber ou suspeitar do desenlace. Queremos saber tudo, já, mas nem sequer sabemos se estaremos cá para contar. E, todavia, há tantos que sabem tudo! Tantos que têm a certeza das máscaras, das luvas e das viseiras. Tantos que têm a certeza do que deve ser feito nas ruas, nos comércios, nas escolas e nos hospitais. Tantos que têm programas impecáveis para reabilitar já a economia, evitar a crise social, distribuir dinheiro, nacionalizar, racionalizar, impedir o desemprego e a falência.
Uns sabem o que se passa. Outros o que deve ser feito. Toda a gente quer aproveitar a pandemia para realizar as suas fantasias. Os tolos querem acabar com o capitalismo. Os idiotas com o socialismo. Os desavergonhados desejam ganhar dinheiro. Os tresloucados pretendem conquistar o poder. E os intriguistas dedicam-se a encontrar culpados. Os ressabiados procuram denunciar os trafulhas. E os vigaristas só pensam em aproveitar. Verdade é que sabemos tão pouco!
No início deste desastre, todos sabiam tudo, os loucos perderam a cabeça e disseram o que já esquecem. Passados os primeiros tempos, os que tudo sabem começaram a acalmar-se. Os políticos que cometeram erros enormes, agora corrigem. Outros deram garantias demagógicas, agora acalmam-se. Mas muitos, cada vez mais, percebem que são os homens e as mulheres que estão em causa. Os sentimentos e as famílias. A vida e o amor. Afaste-se a mentira e a demagogia, festejemos a razão e aceitemos a lágrima. A ciência e a pieguice fazem parte do humano. São humanas. A lágrima fácil e o raciocínio frio. O oportunismo e a sensatez. A aflição e a serenidade. Todos são humanos. Como humana é esta sensação de que a ciência avanço tanto e a vida mantém-se tão frágil.
Mas o valor do humano não está na suficiência nem na presunção. O real valor do humano está na generosidade e na entrega. Na procura e na humildade. Até na fragilidade. Por isso é preferível a incerteza do biólogo, a dúvida do virologista e a cautela do médico à certeza do político, à sofisticação do sociólogo e à garantia do economista.
Público, 5.4.2020
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