domingo, 22 de abril de 2018

Sem emenda - Dois casos

Parece que nada liga um caso ao outro, o interrogatório de José Sócrates e os pagamentos em duplicado de viagens aos deputados insulares. Mas há uma linha indelével: a da facilidade com que se abusa da debilidade institucional.
O caso dos bilhetes dos deputados seria risível, não fosse o tom agressivo utilizado pelos que se aproveitaram. Em vez de se defenderem e de rectificarem, passaram ao ataque com a habitual grandiloquência: é legal, legítimo, eticamente irrepreensível e “tenho a consciência tranquila”! O problema é mesmo esse, terem a consciência tranquila!
Podiam ao menos dizer que iriam ver o que se passava. Que talvez houvesse um aspecto das leis a clarificar. Que a solução adoptada tinha defeitos e seria corrigida. Qualquer coisa… Qualquer coisa que não fosse defender a matilha e garantir que tudo era legal e eticamente a toda a prova… e que só os inimigos da democracia se lembrariam de pôr em causa políticos tão nobres e deputados tão impolutos…
Legal? Não se sabe bem. Legítimo? Não era. Moral? Nem pensar. Tudo grita que ensurdece, tudo brilha que cega: o sistema era falível, o pagamento era duplo, o reembolso não era devido, quase todos se calaram com boa ou má-fé… E não percebem o mal que fizeram. E não entenderam que a democracia estava a perder. E não lhes ocorre pensar um segundo que talvez não sejam imaculados e que a ética republicana, assim interpretada, é a da feira da ladra! E as instituições, fracas e capturadas pelos partidos, não parecem capazes de reagir e de rapidamente sanar a situação, a fim de evitar sequelas.
O segundo caso, o da divulgação em canais de televisão do interrogatório de José Sócrates, brada aos céus. Outros, incluindo os banqueiros arguidos, já por ali tinham passado. E também aqui não se viu, até agora, uma reacção institucional que traga decência e civilidade à justiça.
Mesmo em democracia, um interrogatório feito pela polícia é sempre um momento de debilidade pessoal. Seja ou não bandido ou aldrabão, tenha ou não um currículo violento, possua ou não músculos ou capital, partilhe ou não ferocidade com animais selvagens, um arguido ou um suspeito está sempre, durante o interrogatório, em situação de inferioridade, facilmente amedrontado, quase sempre em fragilidade psicológica. Mesmo quando reage com fúria destemperada, como foi o caso, o arguido está assustado e luta pela vida. Em pleno interrogatório, sobretudo se tem algo a esconder, se há culpa, se procura defender-se, qualquer pessoa, mesmo valente ou violenta, merece, porque é uma pessoa humana, um pouco de respeito. Uma justiça decente tem em consideração a humanidade das pessoas e dos processos. O que estão a fazer com José Sócrates é imperdoável. Como foi com os banqueiros e outros. A falta de respeito pelo arguido não é apenas isso: é sobretudo falta de respeito pelos cidadãos, por nós todos.
Não é o interrogatório que está em causa. A gravidade reside na sua divulgação, na exploração dos sentimentos dos mirones sem mais que fazer do que espiolhar a vida e o sofrimento dos outros. Um ou dois canais de televisão divulgaram longos pedaços daquele nauseabundo processo. Ninguém lhes foi às mãos, nem a justiça, nem as instituições que devem zelar pela qualidade do espaço público.
Não se trata de liberdade de expressão, nem de justiça democrática. Nem uma nem outra devem recorrer à indecência. A Justiça deve ser para todos, incluindo acusados, arguidos, culpados e prevaricadores. O Direito é para todos, incluindo ladrões e criminosos. Os direitos fundamentais são para todos, incluindo os transgressores. Como a democracia é para todos, incluindo os não democratas.
Três instituições essenciais, o Parlamento, a Justiça e a informação, foram postas em causa. Os responsáveis pela divulgação desta grosseria não se dão conta do mal que fazem. Não se importam, nem percebem os danos que causam às liberdades e ao seu país.

DN, 22 de Abril de 2018

1 comentário:

bea disse...

Não se importam com o dano à democracia. Não enxergam que ela se torna mais frágil e menos de confiar, que dá lugar a incertezas indevidas. E, pior que isso, fomentam na grande maioria que os lê e ouve, esse mesmo espírito.