O
Douro é o lugar de um feliz encontro. Nada faria prever que aquela região,
outrora inóspita, fosse local propício para tão venturosa reunião. Da própria
terra, vieram os lavradores e os trabalhadores da vinha e do lagar. De ali
perto, dos vales do rio, os arrais e marinheiros. Do lado de lá da fronteira, a
Norte, os Galegos, inesgotáveis construtores de muros e socalcos. Do Porto,
adegueiros, administradores e comerciantes. Da Inglaterra e da Escócia,
sobretudo, mas também da Holanda e de outros países, comerciantes,
exportadores, colégios de Oxbridge, "Clubs" de Londres e
"pubs" de Edimburgo. Ao fazer um vinho excelente, toda esta gente fez
também uma região, uma paisagem e uma cultura.
Na
verdade, o vinho do Porto não é um simples produto agrícola, mais ou menos
típico, que se pode cultivar aqui ou ali. Com uma forte personalidade, é o
resultado único daquele improvável encontro, mas também é o mais influente
factor de modelação de todo o Alto Douro. O que esta região é hoje, deve-o ao
vinho, à necessidade de o cultivar, armazenar e transportar. Os socalcos, quase
até ao cume das montanhas, foram feitos para se plantar a vinha em proibitivos
declives. Os mortórios, ainda hoje o perfil visível de numerosos vales, são os
cemitérios dramáticos da filoxera. As quintas são a solução empresarial para
uma complexa produção. A navegação do rio Douro, sem a qual talvez não tivesse
havido vinho, abriu uma estrada de primeira qualidade, desde o século XVII.
Sabe-se
que houve vinho no Douro desde os Romanos, pelo menos. Mas, vestígios desses,
há-os talvez em todo o país. A obsessão vinícola do Douro só começa no século
XVII. Os Ingleses e os Escoceses, que negociavam no Norte de Portugal, mais lá
para Viana do Castelo, traziam bacalhau e panos e queriam ter algo para levar
de volta. Ora, os britânicos, quando faltava o vinho francês, iam-no buscar
cada vez mais ao Sul, acabando por chegar a Portugal e Espanha. Em Portugal,
depois de terem importado um pouco de todo o lado, mas sobretudo de Viana e de
Monção, foram procurando para o interior e um pouco mais para o Sul. No Alto
Douro fez-se o encontro. Encontraram um vinho mais forte, mais colorido, mais
encorpado: armas para vencer o transporte e qualidades para seduzir o
consumidor. Mas também um rio que permitiria trazer as pipas até à beira-mar.
O
resto é história. Este vinho transformou-se, nos séculos XVIII e XIX, na parte
mais importante do comércio anglo-português. Em certos anos, foi o vinho mais
importado em Inglaterra. Durante quase dois séculos foi o mais importante
produto do comércio externo português, a principal origem de divisas. E também
foi uma das primeiras fontes de receitas fiscais, situação que levou o poder
político a legislar abundantemente sobre a vinha e o vinho. O governo português,
pelo menos desde o Marquês de Pombal, sempre cuidou, com desvelo e severidade,
do vinho que lhe era fonte de vida. Por isso o Douro constitui, desde 1756, a
primeira Região Demarcada da história, exemplo que virá a ser retomado, desde
os meados século XIX, pela França, depois pela Itália, Espanha, Alemanha e
outros produtores de vinho. Em todas essas paragens se confirmou uma lei da
vida: fazer um vinho é fazer uma região.
Solidamente
estabelecido nos costumes, o vinho do Porto foi mudando sempre, ao longo dos
anos. Com mais ou menos açúcar, mais ou menos álcool, "vintage" de
garrafa ou "tawny" de pipa, consumido como digestivo, aperitivo ou
fora de horas, o vinho do Porto foi evoluindo sempre. O seu princípio, a sua
essência, poderá ser ainda a mesma de há três séculos. Mas a sua circunstância
já não é. Até os consumidores mudaram. O que era quase um monopólio britânico é
hoje universal. Entre os primeiros consumidores do mundo estão os franceses, os
belgas e os holandeses. E até os portugueses, tradicionalmente um pouco avessos
a este vinho, consomem hoje mais do que os ingleses.
Não
foi só o vinho e o seu comércio que mudaram. Também a região, os homens e as
mulheres, os modos de vida e de trabalho conheceram drásticas transformações,
sobretudo nos últimos vinte ou trinta anos. As novas técnicas de plantação, de
vindima, de vinificação, de transporte e de armazenamento alteraram de modo
radical o "livro de horas" duriense. Esta rápida evolução, recente,
contrasta com a longa imutabilidade de costumes e técnicas. Nos anos cinquenta
deste século, cultivava-se a vinha, fazia-se a vindima e guardava-se o vinho de
modo quase idêntico ao que as crónicas dos séculos XVII e XVIII nos relatam. Só
os transportes tinham experimentado uma revolução, nas primeiras décadas do
século XX, com a substituição do barco rabelo pelo comboio. Tudo é diferente,
hoje, na sociedade e nas técnicas, com o que ficaram a ganhar os trabalhadores,
quase escravos de uma natureza difícil. Tudo é diferente, naqueles atapetados vales,
onde mal se percebe o colossal esforço que foi necessário para refazer
montanhas. Apesar disso, sobre todo o Douro, paira a memória de lutas e
batalhas, de abundância e crises, resultado de uma monocultura que tudo
impregnou, das rochas às almas. E a modernidade não consegue esbater a
recordação de dois heróis, símbolos de todo o Douro: o genial inglês Joseph
James Forrester, Barão por mérito, morto no fundo do rio; e a formidável Dona
Antónia, a "Ferreirinha", primeira entre os portugueses e mulher de armas
entre homens que tudo viram.
A
história da região confunde-se com a do vinho do Porto e com a do país na era
moderna. O Douro participou em todas as lutas que fizeram o Portugal
contemporâneo. Modernistas e conservadores; "franceses" e patriotas;
liberais e absolutistas; proteccionistas e livre-cambistas; republicanos e
monárquicos; autoritários e democratas defrontaram-se no Douro, ou por sua
causa, com toda a vivacidade. Uma das mais famosas insurreições do povo da
cidade do Porto, o Motim de 1757, teve o vinho do Douro como causa próxima. A
Guerra Peninsular teve, em Mesão Frio e na Régua, episódios inesquecíveis. A
Guerra entre dois irmãos, Pedro e Miguel, conheceu, no Douro, momentos de
excepcional ferocidade. O mais famoso incêndio da história do Porto é sem
dúvida o das caves da Companhia, em Gaia, onde arderam, por causa da guerra
entre liberais e absolutistas, mais de trinta mil pipas de vinho. As incursões
monárquicas, depois de fundada a República, deixaram, no Douro, marcas
indeléveis. E os três mais conhecidos ditadores do Portugal moderno, Pombal,
João Franco e Salazar, cedo tiveram, nas suas carreiras políticas, de se
preocupar com o Douro. A verdade é que nada nesta região foi simples, ou sequer
sereno. Tal como o vinho. Ou a vida.
1 comentário:
Um texto "daqueles". Como só o Douro consegue proporcionar. Parabéns. FC
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