domingo, 6 de novembro de 2011

Dia da Universidade

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VIVEMOS tempos difíceis. Muito difíceis. Eis um lugar-comum a que, por mais que seja repetido, nunca nos habituaremos, nem nunca ficaremos indiferentes... Ao contrário dos grandes optimistas, não acredito que o próprio da crise seja sempre transformar-se em oportunidade. Às vezes sim, por vezes não. Mas, ao contrário dos pessimistas, não penso que os tempos críticos recomendem a paralisia, nem que não se possa aproveitar para pensar, repensar e imaginar.

Seria fácil, hoje, nesta cerimónia, tomar a defesa da universidade e chamar a atenção de todos, a começar pelas autoridades, para a necessidade de pensar duas vezes antes de proceder a cortes e reduções de meios, recursos e financiamento. Não sei se seria eficaz, mas seria fácil. No entanto, tal atitude deixar-me-ia sempre perplexo perante uma inquietação maior. Qual a importância relativa de cada sector, cada área, cada instituição, cada grupo humano ou cada problema? Num altura em que cortar, reduzir e poupar são as urgências, qual é a escala de importância? Qual é a prioridade relativa? A universidade é mais urgente e importante que o hospital? O idoso é mais sensível do que o adulto activo? O jardim-escola é prioritário, em detrimento da pensão de reforma? O desempregado merece mais cuidado que o engenheiro produtivo? O que pode ou deve esperar: a dívida, o crescimento ou a equidade? Eis dilemas políticos e morais a que não me compete responder, nem é este o local apropriado.

De qualquer maneira, as respostas que contam são as das autoridades responsáveis e as dos representantes do povo. Mas não me fico por aí. Também devem contar as respostas dos corpos organizados. Por isso mesmo, penso que as universidades portuguesas teriam um papel determinante, fértil e exemplar, se conseguissem reflectir, em comum, à sua estratégia e ao seu futuro e se conseguissem, com credibilidade e razão fundamentada, apresentar ao governo e ao Parlamento um plano a médio e longo prazo, perante o qual as instituições universitárias e as políticas pudessem comprometer-se. Diante de todos. Com o povo como testemunha. Num tempo em que as divisões se acentuam e as contradições florescem, seria um formidável exemplo para todos o esforço feito em comum pelas universidades a fim de contribuir para decisões informadas e razoáveis. Num tempo em que tudo parece ser feito para o curto prazo, para o imediato, sem pensar no futuro, seria um excelente precedente e um muito bom exemplo.

Em dia festivo da universidade, além felicitar os que partem, saudar os que ficam e acolher os que chegam, permito-me convidar-vos a reflectir uns minutos na missão da universidade. Não é mais uma repetição, nem, diante dos graves problemas que se nos deparam, uma fuga para a frente. Em realidade, esta discussão tarda em Portugal. E, aliás, em boa parte da Europa. Se lermos a literatura actual e consultarmos todos os meios de comunicação, a começar pela Internet, depressa verificaremos que, em muitos países, incluindo os que mais se notabilizam pela excelência académica, a discussão sobre a missão da universidade e sobre o seu horizonte futuro está cada vez mais presente. Na verdade, as últimas décadas, entre a explosão demográfica, a popularização do novo termo de “empregabilidade” e a reforma dita de Bolonha, a universidade aprendeu a conviver com as crises e a não se inquietar com “questões abstractas”. O resultado não foi, como se julgou, a criação de uma universidade pragmática, aberta ao mundo, flexível e capaz de responder às aspirações das classes médias. Foi, antes pelo contrário, o da quase liquidação da cabeça pensante das universidades. Nestas, há muita gente que pensa, com certeza. Mas a universidade não se pensa. Preocupada com a procura de recursos e sob a enorme pressão de acolher cada vez maiores massas de pessoas, a universidade foi adiando a reflexão. Hoje, entre a tesoura e o garrote, parece ainda mais difícil pensar a longo prazo. Com uma agravante: os poderes públicos não se interessaram. Governo e Parlamento têm estado estranhamente ausentes nesta reflexão. Ocupados obsessivamente com a gestão de problemas e de finanças, descuram o horizonte e o caminho. Ora, tal como a universidade portuguesa – melhor seria dizer as universidades – cresceu nas últimas décadas, há muito se impõe uma reflexão séria sobre as suas funções e os seus objectivos.

Que universidade queremos dentro de duas ou três décadas? Esta é a pergunta! Actualmente, o que parece urgente e vital são as dificuldades, a crise, a massificação, a precariedade, a miséria de recursos financeiros e a “fuga de cérebros”. Será mesmo isso que é vital? Urgente, talvez seja. Vital, duvido. Verdadeiramente essencial é a resposta à pergunta inicial. Que universidades queremos ter dentro de duas ou três décadas? Não tenhamos ilusões: as pequenas decisões de hoje, embora não pareça, vão moldar as grandes escolhas. O pior, neste processo, é quando não se está consciente desta relação entre presente e futuro.

O exercício que gostava de vos propor consiste em rever aquelas que poderiam ser as missões do futuro. Não todas, mas algumas que decidi privilegiar. A da cultura. A da ciência. E a da cidadania. Poderá haver outras, com certeza, como sejam o ensino e a formação profissional. Mas, se as excluo nesta abordagem, é justamente porque penso que são de menor importância do que aquelas três que referi acima.

A missão da ciência, em primeiro lugar. Parece um cliché. Um lugar-comum. Ou uma porta aberta. Não é. Em Portugal, ao longo das últimas duas décadas, fez-se um formidável esforço de desenvolvimento da ciência. Cresceram as instituições, os cientistas, as bolsas, os projectos e os graus. Como cresceram os artigos e as publicações, embora menos as patentes. Cresceu também a rede internacional na qual Portugal participa. Foram talvez os vinte anos de maior desenvolvimento da ciência, no nosso país, nos últimos séculos. Mas, tenhamos de reconhecer: tudo isso foi feito fora, em detrimento ou contra as universidades. Foi criado um “universo paralelo”. Uma espécie de apartheid. Para a ciência, encontrou-se tudo: recursos, pessoal, bolsas, projectos, contactos, critérios, avaliação, severidade, escrutínio... De nada ou quase nada disso beneficiaram as universidades. Bem sei que muitos dos cientistas e das instituições funcionavam, virtual ou aparentemente, nas universidades. Mas eram simples inquilinos. Enquanto na ciência a adrenalina reinava, no ensino a pobreza crescia. Formaram-se aqui e ali pequenos guetos de prosperidade, rigor e modernidade que pouca influência terão tido sobre o corpo integral das instituições, sobre o ensino em especial.

Esta realidade merece evidentemente análise cuidadosa. É minha convicção que a reforma da universidade e do ensino já não é possível sem uma alteração radical de estratégia. A ciência tem de regressar à universidade e tem mesmo de comandar a definição da missão para o futuro e da respectiva estratégia. É, aliás, uma discussão antiga que o nosso país abafou ou quis evitar. Já nas décadas de cinquenta e sessenta vários professores, a começar por Orlando Ribeiro, afirmavam, contra paredes de silêncio, que a primeira missão da universidade é a busca da verdade, isto é, a ciência, sendo que o ensino é um meio para atingir esse fim. A universidade tem de tomar ou retomar o comando da ciência dentro das suas portas. Tem de saber e ter meios para organizar a investigação e o desenvolvimento de modo integrado, a fim de que todos beneficiem, investigadores, professores e estudantes. As universidades têm de ser responsáveis pela sua ciência!

A democratização da instrução e o acesso de massas às escolas superiores vieram tornar essa discussão ainda mais urgente. O ensino universitário criou todas as ilusões. Ou delas sofreu. A ilusão igualitária foi uma delas. Pelo acesso à universidade, a sociedade seria transformada, a mobilidade garantida e a igualdade assegurada. O acesso à universidade passou a ser um direito de todos os cidadãos. A selecção e o mérito foram moralmente condenados e politicamente denunciados. A ilusão profissional foi outra. A universidade teria como missão preparar os jovens para o exercício de uma profissão. Tornou-se um lugar-comum dizer que as universidades devem preparar para a profissão e o emprego. Os estudos politécnicos, cuja missão era exactamente essa, pouco mais fizeram do que copiar, em piores condições, as universidades. A empregabilidade transformou-se num dos principais critérios de avaliação. A especialização profissional foi desejada e cultivada. Inventaram-se títulos, áreas, diplomas e cursos sem critério nem sensatez, sempre à procura de saídas profissionais de oportunidade duvidosa e expediente fácil. A missão científica da universidade, a permanente procura da verdade e a incansável tentativa de compreender e explicar, foi secundarizada.

A missão da cultura, em segundo lugar. Não receio exagerar se afirmar que as universidades são, deveriam ser, o mais importante repositório de cultura da humanidade. Não só depósito ou património. Mas também fonte de cultura, de desenvolvimento e de criação. Da cultura científica, da cultura humanística e das artes. Há cultura sem universidades, com certeza. Mas universidade sem cultura é um absurdo. Porquê referir esta que parece uma evidência? Porque as últimas décadas reduziram e subestimaram o papel das universidades na cultura. Esta foi considerada dispendiosa, acessória, luxuosa, elitista e até inútil. O primado profissional e prático invadiu os auditórios, as salas e as bibliotecas. Até as associações de estudantes se afastaram da cultura. As escolas vocacionadas para as artes tornaram-se parentes pobres. A cultura geral e a erudição, que deveriam estar presentes em todas as disciplinas, ganharam os tristes estatutos de inutilidade socialmente condenável ou de variante facultativa. As aspirações, certamente nobres e legítimas, à democratização, ao igualitarismo e à vocação profissional consideraram a cultura dispensável. Erro histórico! O que mais distingue socialmente, o que mais discrimina e o que mais desigualdade produz é justamente o acesso à cultura geral, ao património da humanidade e à erudição.

As universidades têm hoje um papel medíocre na aquisição da cultura e na criação cultural. Na música e no teatro, nas artes plásticas, no cinema e na fotografia, na poesia e na literatura, as universidades têm um lugar menor. Na história da arte e da cultura, na defesa do património, na reflexão filosófica sobre o mundo antigo e presente e na procura de horizontes para o nosso futuro colectivo, as universidades parecem ausentes, a não ser, eventualmente, nos departamentos específicos. O cruzamento entre disciplinas diferentes e ciências distantes umas das outras ou a junção entre humanidades, ciências exactas e da natureza e tecnologias foi subalternizado a favor de um esforço mais especializado e dirigido. A obsessão produtiva do ensino e do grau parece ter afastado das prioridades a ideia universal e culta da universidade, cuja formação humanista, integral e integrada, é um fim em si próprio. Não será este o momento, depois da explosão demográfica, da multiplicação institucional, da democratização quase sem critério, da fragmentação disciplinar e das reformas tecnocráticas ditas de Bolonha, não será este o momento, repito, para repensar, rever e corrigir?

A terceira missão é a do empenho das universidades no bem comum. Por outras palavras, a sua participação na vida pública e o seu envolvimento no espaço público. Tem havido, recentemente, sinais de que algo pode mudar. Perante as crises financeiras e económicas, várias iniciativas, com origem universitária, revelaram alguma preocupação de académicos com a discussão dos problemas e a procura de soluções. São bons sinais, mas insuficientes. Na verdade, as universidades têm uma dívida perante a população. Há várias maneiras de a pagar. Uma, a mais evidente, traduz-se em serviço pedagógico e formativo: numa palavra, no ensino. Outra, essencial, toma a forma de investigação. Outra ainda, descurada, é a cultura. Mas há uma quarta, nem sempre evidente: a da contribuição para o estudo, o diagnóstico e a procura de soluções para todos os problemas colectivos, da saúde ao urbanismo, da segurança social à economia e da tecnologia à organização do Estado.

Na verdade, nenhum problema do país deveria ser estranho às universidades. Estas deveriam, com uma preocupação obsessiva de independência e de neutralidade partidária, interessar-se por tudo o que é humano e social, por tudo o que é colectivo. Deveriam, desde logo, fomentar o debate e estimular a participação. Pense-se só nos últimos anos. Processos e decisões tão importantes como os do planeamento urbanístico, da organização das cidades, da estratégia energética, da edificação do aeroporto de Lisboa ou da construção das ferrovias de alta velocidade, não teriam ganho tempo, recursos, clareza e rigor se as universidades tivessem sido chamadas a colaborar? Ou se elas, por iniciativa própria, se tivessem empenhado na discussão de projectos tão decisivos para o nosso futuro colectivo? E outras questões de futuro, como a sustentabilidade da segurança social, a organização do serviço nacional de saúde e a reforma da Justiça, não terão a ganhar em qualidade, em precisão, em transparência e em eficácia com a participação empenhada das universidades? Não poderão estas transformar-se nos espaços de liberdade por excelência? Nos locais de debate aberto ao país? Nas autoras de projectos desinteressados em que os principais critérios sejam a liberdade, a independência e o rigor ao serviço do bem comum?

Sabemos que os universitários não são bacteriologicamente puros nem ideologicamente inertes. São pessoas e cidadãos como toda a gente. Mas o clima universitário, o ambiente académico e o “ethos” científico fazem destas instituições os locais potencialmente privilegiados para fomentar a análise rigorosa, o debate sério, a crítica severa e o pensamento livre. Em tempos tão difíceis como aqueles que vivemos, as universidades não se podem dar ao luxo de perder a oportunidade para pagar a sua dívida ao país e dar o exemplo do que de melhor podem fazer: estudar e pensar!

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Universidade Nova de Lisboa
Lisboa, 2 de Novembro de 2011

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