domingo, 1 de novembro de 2009

O lugar da Ciência: A Universidade

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NAS DUAS ÚLTIMAS DÉCADAS, assistimos a um desenvolvimento notável da investigação científica em Portugal. Tratou-se de uma evolução constante, a partir dos anos oitenta, mas com fenómenos de aceleração evidentes. A última década, em particular, terá sido a que melhor exibe um crescimento sem par. Este é visível em todos os indicadores: orçamentos destinados à investigação; número de centros e laboratórios; número de cientistas e de doutorados; fundos destinados à formação e à pós-graduação; bolsas concedidas para doutoramento em Portugal e no estrangeiro; e financiamento de projectos e de instituições especializadas. A despesa com ciência e tecnologia terá já ultrapassado o patamar de 1% a 1,2% do PIB (comparados com os 0,5 ou 0,6% do início dos anos oitenta). É certo que estamos muito longe dos prometidos 2,5% do PIB para 2000, mas os progressos, esquecendo a demagogia política, foram reais. Além disso, aquilo que se pode designar de balança científica e tecnológica, com excepção das patentes, tem revelado uma tendência firme para o equilíbrio ou mesmo o saldo excedentário. Finalmente, o número de citações e de artigos publicados em revistas nacionais e internacionais cresceu de modo consistente, de tal forma que se aproxima das médias europeias. O panorama quantitativo, sublinho, quantitativo, é positivo e deveras encorajador.

Quer isto dizer que o panorama qualitativo é negativo ou medíocre? Não. Quer apenas dizer que, do ponto de vista qualitativo, é muito mais difícil fazer um diagnóstico apressado. Com efeito, se olharmos para cada um das áreas, das ciências ou das disciplinas, seremos obrigados a diversificar o julgamento. Por outro lado, há aspectos relacionados com a selecção de candidatos, o acompanhamento dos bolseiros, a avaliação de projectos ou as prioridades programáticas, que merecem uma avaliação muito severa. E é negativa a quase marginalização a que está condenada a investigação científica em certas áreas das humanidades, das artes ou das ciências humanas e sociais. Em poucas palavras, nesta óptica qualitativa, há muito bom e muito mau. Mas não é esse o tema desta minha breve intervenção. O assunto que me ocupa é o que refiro em título: “O lugar da Ciência: A Universidade”.

A evolução das políticas para a Ciência teve, desde os anos setenta (até mesmo sessenta, nos seus primórdios), uma constante: a tentativa de construir um sistema científico com autonomia e fronteiras próprias. Isto é, um sistema integrado e paralelo à Universidade. Com muitas ligações à Universidade, com certeza, até porque a maior parte dos investigadores e cientistas eram também professores universitários, mas com uma lógica própria. Não faltaram por exemplo, os esforços para erigir laboratórios de Estado, esses sim, totalmente à margem das Universidades. Esta lógica foi sempre sendo reforçada, até chegarmos ao tempo presente em que o sistema científico, se é que se lhe pode chamar assim, está separado do sistema universitário. Como as Universidades ainda são, para todos os efeitos, os principais centros de formação de cientistas, o resultado é que, dentro das universidades, existem os enclaves científicos. No conjunto, as regras de vida da investigação são diferentes das regras de vida do ensino. Orçamentos, modos de financiamento, regras de funcionamento, critérios e métodos de avaliação, oportunidades de recrutamento, estrutura das carreiras, importância do sector para a política pública e relações com a sociedade civil e as empresas: praticamente todo o modo de vida da ciência é diferente do modo de vida da Universidade. A meu ver, isto é um factor muito negativo. Poderá esta orientação, eventualmente (mas não é seguro que assim seja), reforçar a organização e o desenvolvimento da ciência. Mas enfraquece seguramente a universidade como instituição científica, como local de ensino e formação e como sede de criação cultural e artística.

Vale a pena recordar as palavras desassombradas de Orlando Ribeiro há cerca de cinquenta anos: a Universidade deveria ser em primeiro lugar uma instituição científica onde se estuda e investiga e onde se procura a verdade. O ensino seria assim um modo de fazer progredir a ciência, a cultura e o saber. Ora, em Portugal, a Universidade era sobretudo uma instituição onde se ensina e não se estuda ou investiga (cito de memória). As décadas subsequentes agravaram este estado de coisas. A transformação das universidades em instituições de ensino massificado empurrou ainda mais a ciência para as suas margens. Com a intervenção das políticas públicas para o ensino superior e para a ciência, a separação entre ciência e ensino aprofundou-se. Agora, no entanto, com outra realidade. Agora, a ciência existe, tem recursos, programas, regras e pessoal. Agora, a ciência beneficia de um formidável apoio do Estado e da União Europeia.

Tem-se a impressão de que Portugal adoptou aquilo que se pode designar de modelo francês reforçado. A ciência, entendida como prioridade para os governos e como instrumento de desenvolvimento, foi centralizada e integrada, entregue à tutela directa do Estado. As instituições e os esforços científicos encontram-se fora das universidades, nas margens das universidades ou organizadas como enclaves independentes dentro das universidades. O que parece haver e sobrar para a ciência, falta para as universidades. O entrosamento entre investigação e ensino, entre ciência e formação, entre ciência e cultura, parece estar em causa.

Todos conhecemos o argumento. Era necessário, nestas últimas décadas, desenvolver a ciência. Primeiro, com recursos nacionais. Depois, com os colossais contributos europeus que, aliás, constituíram o factor determinante de aceleração do investimento na ciência e tecnologia. As universidades encontravam-se em crise, eram incapazes de responder às exigências. Não se pode, dizia-se, entregar a gestão e o desenvolvimento da ciência a organizações vetustas, a universitários desprestigiados, a cientistas viciados e a instituições degradadas. Também corria ainda a moda que dizia que as velhas universidades não se reformavam e era, portanto, necessário criar novas instituições. Para muitos, até a autonomia universitária era considerada um mal maior e um obstáculo ao desenvolvimento da investigação. A este quadro, deve acrescentar-se o apetite insaciável que os políticos de todos os partidos e ideologias têm pela gestão centralizada da ciência, sobretudo quando há recursos e quando se afirma a prioridade à ciência e à tecnologia. Fez-se o previsível: organizou-se a ciência à margem da universidade. Do financiamento à avaliação, tudo passou a ser diferente. Tempos houve, mesmo, em que os ministérios eram diferentes. Aliás, se hoje estão sob a alçada do mesmo, é apenas porque se pretende poupar em número de ministros e gabinetes.

O facto de Portugal ser o país da União Europeia em que a intervenção do Estado central na investigação científica e no seu financiamento é a maior de todos não resulta apenas da ineficiência da sociedade civil ou da incipiente investigação empresarial. Não decorre também só das deficientes capacidades científicas do sistema produtivo, industrial e tecnológico. Resulta também da acção deliberada do Estado, da sua vontade de centralizar os esforços e os recursos e do seu desejo de receber os respectivos louros.

Dir-se-á que a definição da estratégia e da política científica confiada ao ministério e a suas agências, nomeadamente a FCT, é mais eficiente. Duvido. Muito seriamente. Primeiro: a definição de prioridades pelo ministério é muito discutível. Centralização não é necessariamente razão. Se olharmos bem para a documentação oficial, quase tudo é prioritário. Não se percebe, por exemplo, por que é tão insuficiente a investigação em ciências do mar, da floresta e da vinha. Como é incompreensível que as ciências do património tenham tão poucos recursos. Segundo: os critérios de avaliação e as exigências são geralmente processuais e adjectivas e não decorrem de uma política nacional de desenvolvimento económico e social, nem de uma política científica e tecnológica nacional conhecida. Tem-se frequentemente a impressão de que as políticas europeias são aplicadas sem julgamento crítico e sem adaptação. Verdade é que internacionalização não é sempre razão. Terceiro: a estratégia está excessivamente virada para a “performance” quantitativa e pouco preocupada com o desenvolvimento institucional e a consolidação das universidades. Consolidação das instituições, talvez, mas desde que estas estejam na dependência do sistema científico, não do sistema universitário. Quarto: as agências centrais são incapazes de acompanhar certos processos, como sejam os doutoramentos e as carreiras académicas e científicas subsequentes. Ainda hoje, após largos anos de um formidável esforço de investimento em doutoramentos e pós-graduações no estrangeiro, não está feito um verdadeiro balanço desse esforço, nem sequer foi medido o eventual insucesso ou desperdício. Quinto: o encorajamento à actividade científica é feito, muitas vezes, de modo precário e errático, sem que tal contribua para um acréscimo de consistência das universidades. Sexto: não existem sinais inequívocos de que a liderança do Estado no investimento e no financiamento seja um passo intermédio para um aumento da autonomia das empresas e das universidades no domínio científico.

A minha preocupação, como se pode deduzir, é a da autonomia das universidades, da definição estratégica das orientações de política científica e da ligação entre ciência e ensino. As Universidades não podem ter uma política ou uma orientação estratégica científica, de nada lhes serviria. Limitam-se a recolher alguns benefícios das vantagens obtidas pelos seus docentes cientistas ou pelos centros e laboratórios. E nota-se que as universidades aceitam este modelo, pois, de outra maneira, nem sequer esses recursos estariam ao seu alcance.

Deveria a meu ver competir à Universidades definir as suas estratégias científicas, com impacto evidente nas prioridades, nas orientações financeiras, nas áreas de preferência para encorajamento de doutoramentos e pós-graduações e no lançamento de projectos de investigação. Deveriam as universidades ser as responsáveis pela sua política de investigação, pela coordenação indispensável entre actividades de formação, de pesquisa e de serviço à comunidade. Deveriam as universidades, graças à ciência, poder enriquecer as suas capacidades pedagógicas, actualmente relegadas para segundo plano, dado que a investigação é mais compensadora e parece ter superior estatuto social.

A minha conclusão é simples: o lugar da ciência é a Universidade. Não o único, mas o principal.
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Seminário “O financiamento das Universidades” - Universidade de Lisboa
12 de Outubro de 2009

2 comentários:

Santiago disse...

Bem visto. Parabéns pelo texto.

Passados tantos anos vai-se a ver e o maior erro cometido foi ter tirado a Ciência da tutela do 1º Ministro. Foi isso que permitiu o surgimento dos "Ministros-Embondeiro" que secaram tudo à sua volta. Começou com o Valente de Oliveira e chegou ao zénite com o Mariano Gago.

Hoje em dia nada se passa em Ciência fora do controlo do MCTES. Ora, quando o Ministro, apesar do título, é apenas Ministro da Ciência as Universidades não podem esperar nada de diferente...

Bmonteiro disse...

“O lugar da Ciência: A Universidade”.

Há tempos e passando numa das ruas de Lisboa, dou com um prédio de um ministério.
"Ministério da Economia e Inovação"
Estranhei ver ali a inovação.
Talvez não estivesse pior nalgumas universidades.
Bmonteiro