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“O SOL E O REI não se olham de frente”! Esta frase é atribuída a Luís XIV, o Rei Sol. Não sei se é verdade ou não. Mas a frase encerra conteúdos inesperados. Não se olha, porquê? Queima? Mata? Cega? Deve então fazer-se o quê? Curvar a cabeça? Olhar para o chão? Fechar os olhos? Enterrar a cabeça na areia? Obedecer? Verdade é que os sentimentos que esta frase provoca não são necessariamente os melhores. Medo em vez de curiosidade. Subserviência em vez de respeito.
Qualquer destas consequências tem efeitos medonhos. Não se pode satisfazer a curiosidade. Não é possível resistir, olhar de frente ou reagir. Nem ficar dignamente de cabeça levantada.
No entanto, certo é que houve quem olhasse de frente para o Rei, para todos os reis. Ou presidentes. Para bem de nós e da liberdade. Como também houve quem olhasse directamente para o Sol. Com óculos ou filtros, não sei. Mas conheço os resultados. Fabulosas fotografias e, sobretudo, pintado por Turner, um quadro inesquecível, todo amarelo de fogo, quase sem forma arredondada! Ele olhou de frente para o Sol e fez uma obra-prima.
Além de levantar a cabeça, manter a coluna vertical e preservar a sua dignidade, há mais no olhar. Para conhecer, para perceber, é preciso olhar. Eis por que tantos, os que não olham para o Rei nem para o Sol, também o não fizeram com a crise. Por isso é também necessário olhar de frente para esta.
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SE RECORDARMOS os acontecimentos financeiros e políticos do último trimestre de 2008, lembramo-nos seguramente da grande agitação que correu mundo. É minha convicção, já era nessa altura, que estivemos a poucos metros do abismo. Do colapso total do sistema financeiro e bancário internacional. Ter-se-ia seguido uma crise de inimagináveis efeitos, tanto económicos como sociais e políticos. Não sei o que faltou, para que o desastre não tivesse ocorrido. Nem sei exactamente o que foi feito e teve como consequência evitar o descalabro. Diz-se que foi a reacção dos governos, sobretudo do americano e do inglês. Há quem sugira que a eleição e a tomada de posse de Obama foram um bálsamo. Outros apontam para a resistência das economias que, apesar da volatilidade financeira, seguram as sociedades. Tenho para mim que o essencial foi a população não ter perdido inteiramente a confiança. Apesar dos poucos sinais tranquilizadores dos governos e mau grado os muitos indícios aterradores dos banqueiros e outros negociantes, as populações, sobretudo a americana, não se deixaram arrastar pela desconfiança. Foi quanto bastou.
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O QUE REALMENTE caracterizou esta crise de 2008 foi a ameaça de perda de confiança. O princípio da perda de confiança, numa larga escala e com enorme rapidez. Esse foi o facto novo. Que pensar então dos outros traços mais evidentes naquele processo aparentemente dramático? Ganância e cupidez? Sempre houve, sempre haverá. Bolhas bolsistas? Registaram-se várias e maiores nos últimos trinta anos, como, por exemplo, a das tecnologias e das comunicações. Fraudes cometidas por banqueiros, corretores e gestores? Nunca faltaram e, desde os anos oitenta, contam-se vários episódios de colossais dimensões (“Enron” e “Loans and Savings”, por exemplo). O envolvimento, em actividades arriscadas e ilícitas, de grandes instituições privadas e públicas, de honestas fundações e de reputados banqueiros? Sempre esteve presente. A robusta intervenção do Estado? Só depois da crise. A dimensão internacional? Também não é novo. O carácter artificial e fictício de grande parte das operações financeiras especulativas? É antigo e, desde há trinta anos, frequente, a ponto de ser parte integrante do capitalismo. Sendo assim, porquê esta crise? Pela simples razão de que todas as causas acima referidas, em simultâneo, de grande dimensão e a alta velocidade, ameaçaram o fundamento do sistema: a confiança. O que é curioso é que a confiança voltou, mas aquelas causas não desapareceram. É por isso que o capitalismo é forte e imoral.
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LENTAMENTE, a confiança voltou. Foi muito gradual. Ainda hoje são visíveis as precauções e a hesitação no andar. Mas a confiança regressou. Não necessariamente a confiança no futuro, no próximo emprego, no melhoramento da vida e nos novos rendimentos. Nem sequer a esperança de que tudo volte a ser como antes, ou quase. Não. Para já, é apenas a confiança nos sistemas (que precisam de reparação, sabemos). Isto é, a percepção de que já nos afastámos do precipício. A confiança em alguns valores ou instituições. A certeza de que podemos gradualmente retomar as nossas rotinas: em casa, no emprego, no recreio, na criação, no negócio e na rua.
Se a confiança é a medida da crise, a crise acabou. Voltou a confiança, foi-se a crise. É verdade na América, o que quer dizer que é no resto do mundo. Também em Portugal. Evidentemente, ainda vai haver sequelas. Ainda vamos ver mortos e feridos, falências e desemprego. Mas isso já não é crise. São os resultados da crise. Com a nossa dimensão e com a pobreza que é a nossa, teremos mais desses efeitos do que a maior parte dos países europeus. Mais e por um tempo mais longo. Mas, a partir de agora, já só de nós nos podemos queixar. Ou sabemos organizar, poupar, trabalhar e recuperar, ou teremos consequências da crise por muitos anos.
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É UMA DAS MAIS odiosas frases políticas! É moral e politicamente correcta. Um cliché de encenação. Um detestável lugar-comum. Reza assim: “Uma crise é sempre uma oportunidade”! Os seus autores, ou antes, os seus repetidores têm, em geral, certezas. Da fortuna, do emprego, do cargo político ou do nome e da família. Para eles, talvez seja uma oportunidade. De fazer o que adiaram. De se verem livres de quem não ousavam. De desculpar as suas deficiências com a crise dos outros. De se afirmarem nos seus cargos. De venderem esperança e confiança que eles próprios não criaram.
Para as vítimas da crise, as oportunidades são poucas. Sem capital ou emprego, sem capacidades ou meios, sem idade ou força, com dívidas e pessoas a cargo, não lhes será fácil encontrar essa oportunidade. Há quem consiga. São verdadeiros heróis. Mas não são a maioria. As crises, como esta que passou, deixam pessoas exangues e famílias cansadas. Por onde passa a crise, ficam terras queimadas, árvores desmembradas e pessoas desenraizadas. Como aquelas por onde passam os quatro Cavaleiros...
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NAS ORIGENS do termo “crise”, está o sentido de mudança ou transição. O que exige alteração de rotinas e certezas. Adaptação e flexibilidade. Meios e confiança. Segurança e energia. Não há mudança sem aflição. Perdem-se raízes, não se encontram os caminhos. Mesmo quando é para melhor, a mudança é sempre exigente. Por isso a palavra acabou por tomar este novo significado que está próximo do desaparecimento dos equilíbrios, da incapacidade de continuar e do medo de avançar. Crise é sempre perda. Perda de bens, de sentimentos, de pessoas, de bem-estar e de certezas. Com a crise vivemos em permanência. É quando ela se avoluma que toma a dimensão do espectro. E deste só conhecemos um rosto: o da morte!
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ESTA CRISE, a de 2008, acabou. Os seus efeitos vão durar. Mas voltaremos às nossas crises. A da educação, pela mediocridade. A da justiça, pelo atraso e pela falta de confiança nos magistrados. A das famílias, pela perda da natalidade e pelo abandono dos idosos. A da segurança, pelo aumento da criminalidade. A da administração, pelo centralismo exagerado. A da moral pública, pela impunidade da corrupção. A da política, pela abstenção crescente, pela crispação dos partidos e pela demagogia. A das cidades, pela desertificação dos centros históricos. A do ambiente, pela desatenção às árvores, aos jardins e aos parques. A dos recursos, pela negligência com que se trata da floresta e do mar.
Mas só quem percebeu que a crise acabou é que está preparado para enfrentar as suas consequências.
Revista EGOÍSTA Set 09
4 comentários:
O meu amigo António Pedro Vasconcelos chamou-me a atenção para um lapso imperdoável. A frase, tal como ficou na tradição, é: "O Sol e a Morte não se olham de frente"! Sob a influência do "Rei Sol" que vinha a seguir, espalhei-me...
AB
O medo do afrontamento
fugindo da confrontação,
tolda o nosso sentimento
em torno da lamentação.
Foi tal a velocidade
de factos negativos,
reivindicando a necessidade
de valores mais intelectivos.
A mudança é exigente,
exigindo uma nova postura,
uma postura inteligente
para reforçar a nossa cultura.
São várias interrogações
sobre o actual crescimento,
sendo de evitar divagações
de total deslumbramento.
Problemas disfarçados
pelo consumo privado,
deixa alguns traçados
de um futuro entravado.
"A crise acabou!"
Não acabou nada. A economia está em convalescença e uma recaída não pode ainda ser descartada.
Além do mais, como bem sabe, em Portugal sofremos de crise dupla (a global e a nossa, privadamente nossa) e esta está longe de ter acabado. Enleou-se na outra mas vai perdurar para além dela.
"as causas acima referidas, em simultâneo, de grande dimensão e a alta velocidade, ameaçaram o fundamento do sistema: a confiança."
É muito evidente que se os depósitos em bancos são multiplicados por estes em créditos concedidos, com maturidades e riscos diferentes; se a confiança desaparece generalizadamente e os depositantes correm a querer levantar o seu dinheiro, o sistema afunda-se irremediavelmente.
Podemos lamentar as vítimas, os mexilhões, mas o mais necessário é pensar como recuperar sustentadamente a confiança e vacinar o sistema.
Como é que isso se faz é que ainda ninguém sabe. Ou sabe mas não sabe como pôr a funcionar.
Há várias propostas. Destaco três.
Uma, de Ron Paul, o candidato libertário, derrotado, à nomeação republicana nas últimas presidenciais. Propõe a eliminação da Fed. Elimina-se a Fed e volte-se ao padrão ouro e acabam-se as crises financeiras e as guerras.
"End the Fed" pode não ser levado muito a sério mas contém algumas afirmações que convém tomar em conta.
Mervyn King, governador do Banco de Inglaterra propõe a separação dos bancos de investimento dos bancos de depósitos. A ideia não é nova, uma ideia parecida já fez o seu percurso nos EUA durante cerca de oito décadas, foi derrogada no tempo da administração Clinton, há quem veja nessa decisão o factor que germinou a crise.
A separação proposta por King foi imediatamente recusada pelo Primeiro Ministro Brown e pelo "chancellor of the exchequer" com o argumento de que tal representaria o fim da banca. (vd artigo de Martin Wolf no Financial Times de 4ª feira passada:"Why curbing finance is hard to do")
http://www.ft.com/cms/s/0/0a8a6362-bf3d-11de-a696-00144feab49a.html
Para Martin Wolf a solução, que ele duvida seja aceite, está em acabar com as operações de alavancagem sobre futuros:
"So long as we allow people to make leveraged bets on the future, breakdowns will occur. The division of finance into utility and casino cannot solve this problem. Only the end of leverage would do so. Do we want that? I doubt it."
Crise, etimologicamente, é também o acto de escolher. É em situações de crise que as rotas se alteram ou não. O 11 de Setembro poderia ter sido um momento de crise susceptível de alterar radicalmente os canais por onde passa o dinheiro do tráfico humano, da droga, das armas, das evasões fiscais. Não foi.
Talvez desta crise não resulte também a criação da vacina necessária. Há sempre quem seja contra as vacinas até porque nem todas as vacinas são fiáveis. Um dia sê-lo-ão. E terão de passar pela imputação dos riscos a quem usufrui das vantagens de quem os assume. O “moral hazard” tem de ter os dias contados. Por enquanto não se sabe quando.
Entretanto, problemática, sem solução à vista, continua a ser a nossa crise.
Só se espalha quem se mete nelas, pelo que mais vale correr esse risco...
Apesar de tudo, até acabou por se safar, pela declaração prévia "Não sei se é verdade ou não".
Quanto à crise, bom... o pior já terá passado. Resta saber se se aprendeu alguma coisa com o sucedido ou se se vai deixar que os mesmos erros voltem a ser cometidos.
Neste particular faz mais sentido que nunca o velho ditado "mais vale prevenir..."
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