É provável que, como nunca antes, a larga maioria da opinião pública mundial e das posições dos Estados esteja contra Israel, contra a sua campanha militar, contra os métodos utilizados em Gaza e contra a responsabilidade do governo na não obtenção do regresso dos reféns. Até já dentro de Israel a opinião contrária ou crítica do governo e da sua acção em Gaza e na Cisjordânia começa a ser significativa e pública. As reacções justas e justificadas do governo e das Forças Armadas de Israel contra os covardes ataques do Hamas começaram por ser aceites sem dificuldade. Dois anos depois, são geralmente consideradas desproporcionadas, excessivas e até dignas do epíteto de genocídio. Os mais indignados fazem mesmo repetidas alusões ao Holocausto. De vítima, Israel passou rapidamente a criminoso.
Há, evidentemente, razões para isso. A destruição de Gaza, os bombardeios das cidades e vilas, a destruição de escolas e hospitais, a morte sem distinção de militares, guerrilheiros, terroristas, civis, idosos, doentes, mulheres e crianças e a imposição de regime de fome e sede são motivos suficientes para condenar a política do governo de Israel. O massacre de uma população, de um povo, de uma comunidade e de um país é motivo mais do que suficiente para criticar e rejeitar a acção do governo de Israel.
É impressionante ver como a opinião pública crítica e contrária à política do governo de Israel foi crescendo ao longo destes dois anos. A crueldade terrorista dos ataques islâmicos de 7 de Outubro de 2023 foi quase universalmente condenada. Excepto nos países mais fanáticos, a começar pelo Irão e incluindo o Líbano, o Iémen e a Síria, a campanha do Hamas contra Israel foi então criticada. Mais de mil pessoas assassinadas e mais de duzentos reféns foi o resultado imediato da acção terrorista, prontamente denunciada pela opinião pública mundial. Depois disso, a acção do governo de Netanyahu conduziu sistematicamente a mudar a opinião, actualmente em maioria desfavorável a Israel. Foram, até hoje, mais de 50.000 palestinianos mortos. Foi uma espécie de país totalmente destruído, onde deixaram de existir casas, ruas, vilas e cidades. Foram, provocadas pelo governo de Israel, a fome, a sede e a doença, assim como a falta de cuidados médicos e de apoio humanitário. Multiplicam-se hoje, pelo mundo inteiro, as manifestações e os protestos contra o governo de Israel, sem que ninguém ou praticamente ninguém se levante para defender e apoiar este país.
É chocante ver como os movimentos terroristas do Hamas, do Hezbollah, da Al Qaeda, do Estado Islâmico (ISIS) e da Jihad Islâmica, assim como os Estados que os apoiam explicitamente (com relevo para o Irão) têm vindo a receber e gozar do estatuto de vítimas, de movimentos políticos razoáveis e de partidos com ideias aceitáveis pelo resto do mundo. Mais ainda, estes movimentos, condenados por grande parte da opinião, são hoje considerados como interlocutores aceitáveis. O Hamas, o Hezbollah, restantes grupos terroristas e respectivos governos apoiantes souberam, com mestria, aproveitar e fomentar a onda de opinião a seu favor. A utilização intensiva de feridos e de cadáveres de mulheres, de crianças e de idosos na comunicação social do mundo inteiro está a dar resultados valiosos para as suas causas.
Mais do que nunca antes na história, os movimentos terroristas islâmicos, a começar pelo Hamas e pelo Hezbollah, utilizaram os civis, os idosos, as crianças e as mulheres como escudos humanos. Esconderam-se debaixo deles, sob os hospitais e as escolas, dentro dos lares de velhos e doentes, a fim de provocar massacres de inocentes para poder exibir nas televisões, nos jornais e na ONU. Cavaram centenas de quilómetros de túneis e de subterrâneos sob as cidades, debaixo das instituições, das escolas e dos hospitais. Raramente, na história da humanidade, se assistiu a uma tal crueldade, a um tal cinismo. Os movimentos terroristas, a começar pelo Hamas, procedem com especial cuidado a fim de provocar sempre a morte de crianças, o desmembramento de idosos e os ferimentos de mulheres. A morte por fome e sede, a desnutrição, a subnutrição e os ferimentos mortais de crianças são procurados pelo Hamas e exibidos com orgulho como prova da sua justeza e da crueldade de Israel.
No mundo ocidental, na Europa, nos Estados Unidos, no Canada e na América Latina, mas também na Austrália, no Japão e na Nova Zelândia, Israel é hoje o agressor cruel e desumano, enquanto os terroristas do Hamas e seus apoiantes são as vítimas. Na Europa e na América, tem tido larguíssimo curso esta realidade dos “dois pesos e duas medidas”, ou de “double standards”, que tanto mal faz à democracia e ao sentido de humanidade. Que tanto prejuízo provoca nos fundamentos da moral pública dos países democráticos. Os países que não reconhecem Israel, que desejam e lutam pela sua extinção, são desculpados e justificados. Mas são condenados os que não reconhecem o Estado da Palestina.
A discussão sobre a solução dos dois Estados e sobre o reconhecimento do Estado da Palestina está já a dar frutos favoráveis aos movimentos terroristas. Não se exige o reconhecimento do Estado de Israel, mas sim e apenas o da Palestina. Considera-se aceitável a política oficial de vários movimentos e de alguns Estados da região que consiste em propor a eliminação do Estado de Israel e a expulsão do seu povo. Reconhece-se o direito à sobrevivência e à defesa de qualquer grupo ou Estado islâmico, mas não se reconhece o mesmo ao Estado israelita.
O povo de Israel, com toda a sua formidável história, notável nas ciências, nas artes e nas finanças, um “povo orgulhoso”, como lhe terá chamado De Gaulle, este povo não merecia esta enorme derrota política, humanitária e cultural, cujas consequências se vão arrastar durante tempos sem fim. O governo de Israel tem todo o direito a defender a sua existência, cabalmente legalizada há décadas, mas não tem o direito de massacrar outros da maneira como está a fazer em Gaza e se prepara para fazer na Cisjordânica. Tem o direito de atacar o Hamas e o Hezbollah, assim como os governos da região que os apoiam, mas não tem o direito de massacrar um povo. O governo de Israel, raríssima democracia naquela região do mundo, não tinha o direito de infligir esta derrota ao seu povo e à democracia do seu Estado.
Um dia falar-se-á da vitória militar de Israel. É possível. Política é que não é.
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Público, 2.8.2025